Tuesday, January 22, 2008

Um neo-marxismo anacrónico.


Nas minhas aulas de sociologia procuro sempre situar as ideias dos autores que apresento e discuto com os estudantes no contexto social, histórico, intelectual e geopolítico da época desses autores. Procuro também sugerir que estabeleçam a relação entre a biografia dos autores e o seu pensamento teórico e social. Este é um pressuposto metodológico – pedagógico que adopto para situar não só os autores e suas ideias, no seu tempo e espaço, mas principalmente para que os meus estudantes não se deixem levar por ideias que a primeira vista podem parecer atraentes para aplicá-las de imediato em seu contexto. Uma outra razão deste procedimento é precavê-los para que evitem julgar as ideias desses autores a partir da sua experiência actual. É preciso ser muito cauteloso nesse sentido. A tentação é dupla. Uma é a de achar as ideias são tão brilhantes e transportá-las no tempo e espaço sem as devidas precauções; a outra é julgar os autores dessa época com os olhos e realidade de hoje. Chama-se a isso uma leitura anacrónica.

Dos autores que apresento e discutimos nas aulas procuramos retira-lhes e compreender o princípio explicativo da sua teoria social. Quer dizer, tentamos identificar os problemas sociais que os preocupavam e depois como os formulavam em problemas sociológicos. Isso é fazer sociologia. O que nos interessa é perceber que teorias, que métodos e que argumentos o autor nos apresenta. Que quadro explicativo nos sugere, que categorias e conceitos analíticos nos apresenta no seu esquema explicativo e por ai em diante. Algumas das ideias dos autores são bem actuais, i.é parecem referir-se a problemas sociais que se colocam hoje em dia. Na verdade é dai que deriva a designação de autores clássicos porque as suas ideias atravessam gerações e mesmo assim se mantêm actuais.

Todavia, essa actualidade deve ser sempre cuidadosamente revista. Existem vários académicos que de uma ou de outra maneira tentam aplicar os instrumentos teórico-analíticos de Marx ao contexto Moçambicano. Alguns fazem-no com alguma criatividade. Sobre esses não me vou ocupar agora. Fica apenas um exemplo, clássico. Em Moçambique já ouve tentativas interessantes de se fazer uma leitura classicista da sociedade. Uma das obras, clássica, onde se aplica a teoria da luta de classes de forma criativa e rigorosa é “O Mineiro Moçambicano”. O mineiro Moçambicano é um estudo, sobre a exportação de mão-de-obra em Inhambane, produzido por um grupo de cientistas sociais na altura sedeados no Centro de Estudos Africanos (CEA) da Universidade Eduardo Mondlane. No “O mineiro Moçambicano” os autores aplicam os instrumentos analíticos da “teoria marxista de análises de classes” a sociedade Moçambicana tendo identificado ou melhor construído categoriais sociais na base do conceito de classe social. É interessante notar que já nessa altura os autores se deparavam com problemas de adaptabilidade da teoria. Nessas circunstâncias referiam-se, por exemplo, a ausência de um grupo social como resultante da própria acção deliberada do sistema “capitalista” colonial como sugere a seguinte frase:

“A economia colonial sobreviveu durante muitos anos na base de uma dependência de dois sistemas, o trabalho migratório e o trabalho e agricultura coercivos, mesmo depois da abolição formal das culturas e do trabalho forçado. O colonialismo português introduziu mecanismos impeditivos do crescimento de uma burguesia negra, agrícola ou comercial. Assim, embora houvesse uma diferenciação de classe e até mesmo alguns ‘koulaks’ e pequenos comerciantes, o sistema de produção agrícola e industrial manteve-se nas mãos da burguesia portuguesa” (CEA, 1998).

Forçar a realidade aos conceitos.

Não é a realidade que se deve adaptar aos conceitos, são estes que devem dar conta da realidade. Quando os conceitos não dão conta da realidade são aqueles que devem ser reajustados e não o contrário. Não estou a querer ser Rortiano e sugerir que a realidade nunca está errada, mas neste caso a máxima parece se aplicar bem. A realidade nunca está errada, o conhecimento – já agora os conceitos e teorias – que pretendem dar conta dela é que podem estar erradas. Estas são noções básicas que partilho com os meus estudantes. Se, por exemplo, achamos que a nossa sociedade se presta a uma leitura classicista o mínimo que se espera de nós, como sociólogo criativo, é o exercício de revisitar o seu conceito de classe. É preciso reflectir sobre os critérios e precauções metodológicos que tomamos antes de lançarmo-nos na precipitada classificação das coisas.

O neo-marxismo, por exemplo, surge justamente pela lufada de ar fresco que se deu a teoria de analise de classe de Marx para poder dar conta das transformações da sociedade que já não se adequavam a uma leitura nos termos em que havia sido feita por Marx. É claro que há vários tipos de neo-marxismo, mas vou ater-me a aquele que se refere análise de classes. O próprio Marx havia feito vista grossa a tendência crescente da classe média na Europa, facto que contraria seu esquema analítico na previsão (profética) de que o processo seria inverso. Quer dizer, para Marx a burguesia e o proletariado constituíam os dois pólos (grupos sociais) antagónicos na sociedade capitalista. Essa, portanto, era uma estrutura social contingente daquela constelação histórica, e que seria superada. Não me vou alongar nos detalhes desta história pois imagino ser do domínio dos leitores deste blog.

Existe toda uma literatura sociológica em torno desse aspecto sugerindo novas abordagens e até novas formas de conceptualização de classe social, para dar conta precisamente da crescente e hierarquicamente diversificada classe media dependendo dos critérios usados para classificá-la. O termo classe passou a ser mais flexível na sua definição para dar conta de uma multiplicidade de grupos sociais cuja base de existência e reprodução da vida não derivava necessariamente da esfera económica e das relações de produção material da vida. Multiplicaram-se profissões, houve avanços tecnológicos significantes, enfim, houve uma mudança da estrutura social das sociedades. É, portanto, no mínimo anacrónico que qualquer sociólogo, hoje em dia, se admire que existam pessoas que vivam apenas do seu trabalho intelectual. É no mínimo estranho, que hoje em dia, um sociólogo que se preze sugira aqueles que se desligaram da produção material da vida (incluído quem afirma isso)– como Marx anuncia na primeira premissa da concepção materialista da história – tiveram a função de pensar a sociedade, muito menos aos serviço do poder. Os advogados, os escritores, os artistas, os músicos, as estilistas, as modelos, as palhaços e toda uma infinidade de profissões desligadas da produção material da vida não estão necessariamente a pensar a sociedade, muito menos ao serviço ideológico do poder. É no mínimo uma leitura descuidada fazer esse tipo de asserções.

Não estou a sugerir que não é possível fazer-se uma leitura classicista da nossa sociedade. Penso até que há elementos interessantes da nossa realidade que podem ser recuperados através de uma leitura neo-marxista. Todavia, o sociólogo que quiser fazer isso terá de dar conta das possibilidades heurísticas, hermenêutico-analítica e metodológicas do conceito. É preciso tomar esses cuidados para evitar forçar a realidade aos conceitos em função pretensão “ideológica” de fazer uma leitura neo-marxista da sociedade. Os conceitos não são totalmente isentos de uma carga ideológica por serem conceitos. É por isso fundamental inseri-los não apenas num quadro teórico (neo-marxismo) que informa a nossa leitura da realidade, mas também no contexto social, histórico, intelectual a que eles fazem referência e nos remetem. É anacrónico por exemplo, discutir o Socialismo Africano (Ujama) de Nyerere, a Luta de Classes de Nkhumah, ou o Socialismo Cientifico, Samoriano ou Frelimista como se fossem raios caídos de do céu azul. Por isso, ínsito nos meus estudantes a permanente vigilância epistemológica para que não se deixem levar pela animosidade que pode-lhes surgir na leitura da sua sociedade pela aparente adaptabilidade desses conceitos para denunciar problemas sociais antes sequer de formulá-los sociologicamente. Por isso, o maior desafio metodológico dos sociólogos é justamente o de fazer a transição da formulação senso-comunista dos problemas sociais para a formulação sociológica dos mesmos!

4 comments:

Anonymous said...

Aren't you hilled yet?

Melíflua

Anonymous said...

Gostei do teu texto.
Parabens.

Anonymous said...

Podes vistar o meu blog:
http://afelicidadedomundo.blogspot.com/

Anonymous said...

Leia Nildo Viana, o marxista mais atual e atualizado do momento e que melhor trabalha classes. São fundamentais algumas de suas obras, sobre classes, o seu Introdução à Sociologia, de 2006 e sobre atualidade, O Capitalismo na era da acumulação integral.