A definição de honoris causa é bastante generosa pela sua amplitude. Honoris causa significa, literalmente, causa nobre. Na língua de Camões (será que alguma universidade luso já se lembrou de fazer de Camões Doutor Honoris Causa - DHC) causa nobre é um título honorífico concedido a uma personalidade que tenha contribuído com os preceitos de uma instituição oficial de ensino, não pertencente a seu quadro funcional. A causa nobre pode ser pelo saber ou pela actuação em prol das artes, das ciências, da filosofia, das letras ou do melhor entendimento entre os povos. Como vides muita coisa pode caber no guarda-chuva do DHC. No entanto, sendo a universidade tradicionalmente um lugar privilegiado, mas não exclusivo, da produção de conhecimento científico é de esperar que os galardoados representem algo para o avanço dessa cultura. Até que ponto os nossos laureados representam algo em termos de contribuição para o avanço da cultura académica e do espírito científico?
Os presidentes, em África, eram os principais laureados com o DHC. Quase todos, continente adentro, já alguma vez foram agraciados. Alguns tendo tido inclusive uma relação madrasta com a universidade. Há algum tempo atrás, durante o “Chissanismo”, o nosso ex-presidente Joaquim Chissano era praticamente o único agraciado com DHC e principalmente por universidades estrangeiras. O País anda(va) nas graças da comunidade ajudante – quer dizer internacional. Estavam deslumbrados com o que consideravam ser a capacidade de negociar a paz e reconciliatória de Chissas. Como se aquela fosse produto da acção individual. Mas isso não vem, agora, ao caso. As mesmas entidades, hoje, estão a retirar tudo que foi DHC que durante décadas atribuíram ao tio “Bob”, Mugabe. Hoje o tio “Bob” não mais representa uma causa nobre, mudaram-se os tempos e com ele as vontades. O tio “Bob” é, para os ajudantes, o demónio em pessoa!
Recentemente nota-se que não são mas apenas os presidentes os “honráveis sem causa” para usar o termo do Rildo Rafael. Alargou-se a base de selecção dos honráveis e com esta a lista. Num espaço de menos dois anos diferentes instituições de ensino superior, entre públicas e privadas, andam numa verdadeira procura de figuras honráveis. O próprio Chissano voltou a ser agraciado pelo Instituto Superior Politécnico e Universitário (ISPU), se não me engano há dois anos. Foi-lhe inclusive conferido uma cátedra, a de resolução de conflitos. A faculdade de letras, da Universidade Eduardo Mondlane, que faz questão de frisar ser a maior e mais antiga, retorquiu atribuindo também a Chissano mais um honoris em Ciência Política.
Como referi há pouco começamos a assistir a diversidade no tipo de laureados pelas universidades. Perturbaram o sono eterno do nosso poeta mor, José Craveirinha, para lhe vestirem as túnicas de DHC, ainda que na cripta tumba. O pintor Malangatana Valente Ngoenha teve a sua vez no ISPU. Mais recentemente a UEM voltou a carga doutorando honoris causa o fotojornalista Ricardo Rangel e o “king” da Marrabenta – título disputado por Dilon Djindji – Fany Mpfumo. Há dois dias passei pela faculdade de educação da UEM e vi na vitrina mais um anúncio para o próximo DHC. Trata-se de um nome, pelo menos para mim desconhecido, que vai se tornar honoris causa. Ao que parece a fasquia vai baixando. Não tardará e teremos uma inflação de doutores honoris causa. Aí o consenso que parece prevalecer em relação as figuras até agora galardoadas vai certamente reduzir com a entrada dos ilustres desconhecidos. Não tarda e teremos a mesma situação que se assiste na definição de herói nacional. O que ainda não está claro, repito, é o que as nossas universidades estão a ganhar, em termos de capital científico, associando-se a essas figuras.
Ainda que se comece a diversificar a base de selecção, entre vivos e perecidos, a característica típica dos premiados é de indivíduos cujo prestígio radica fundamentalmente da sua acção na esfera política, mais do que académica. Mesmo no caso das artes, a obra de Malangatana deve boa parte da sua autoridade e legitimidade ao capital político que lhe esta associada e menos a qualquer sentido académico. A obra de Craveirinha deve parte da sua grandeza as profecias de nação que os historiadores designaram de proto-nacionalismo. A obra de Rangel idem. Como estes podia falar de tantos outros. Já podemos imaginar a lista dos próximos galardoados, nessas categorias, desde políticos até político-artístas. Que tal honoris causarmos Samora Machel, Justino Tchemane, Josina Machel, A. Matsangaisa (post mortem), Alberto Chipande, Lurdes Mutola, os Mambas e a mim, claro!
É claro que todas as esferas da vida são de alguma maneira esferas políticas. São no na medida em que existe sempre um substrato de relações de poder. O político, o artístico, o científico e o académico não são campos estanques. No entanto cada um deverá preservar uma certa autonomia relativa para se perpetuar. Quando o político se sobrepõe ao académico e vice-versa começamos a ter problemas de disfunção. Quando o político está na base do reconhecimento académico ou científico é porque aí há algo pervertido. O académico prestigiado pode eventualmente converter-se num político, mas raramente o inverso o corre com sucesso. Bom, acabei desviando-me um pouco do cerne da questão. Até que ponto os nossos laureados representam algo em termos de contribuição para o avanço da cultura académica e do espírito científico?O que está por detrás da recente corrida a procura de honráveis? Vou retomar estes pontos no próximo texto. Espero que ainda tenham paciência para me acompanhar, pois vamos explorar a dita lógica de competição no mercado do ensino superior. Aí a atribuição de DHC a figuras publicas com prestígio pode ser visto como uma estratégia de marketing para adquirir vantagem competitiva nesse mercado [Continua].