Na moeda da nossa cultura há muito que Mia Couto deixou de se inscrever no reverso, nesse lado onde pontificam outras nobres figuras das nossas letras e artes, porque transladou, por mérito, por labor, ao anverso, e tornou-se na efígie da nossa moeda na transacção no grande bazar das culturas. A essa moeda já não se pergunta pela sua validade, mas pedem-se trocos, quer-se conhece-la nas suas múltiplas vertentes, nos seus variados espelhos. No dédalo das culturas, a obra do Mia, para nosso gáudio, não foi devorada pelo Minotauro sedento do efémero, do passadiço, porque o fio de Ariadne, o fio da perseverança, o fio da qualidade, o fio da salvação ao olvido, o guia pelos labirintos do mundo da literatura saudável, robusta, perene, e sem artifícios, como dizia Hemingway. Com Mia ganha a literatura moçambicana, ganham os escritores, e ganha este País ainda relutante em assumir que a grande bandeira na memória dos povos é a cultura drapejando pelo mundo nos seus variados tentáculos.
Ao ler Jesusalém, ocorreu-me, pela estratégia, o Engenhososo Fidalgo D. Quixote de la Mancha.
Cervantes, com a sua obra, erigiu, como todos sabemos, o fundamento do mundo romanesco moderno: a ambiguidade. Não há uma verdade, há muitas verdades. Verdades relativas que se vão entrelaçando, formando um nó que o leitor vai desenlaçando com o prazer ou desprazer, dependendo do engenho do autor. Em Cervantes, D. Quixote sai para o mundo, desfazendo injustiças e protegendo damas, personificadas no amor imaginário pela Dulcineia Del Toboso. Em Jesusalém os personagens saem do mundo e pervagam pelos labirintos da vida interior, esquecendo injustiças e riscando damas da memória. Em Cervantes o Fidalgo D. Quixote, acompanhado do seu escudeiro Sancho Pança, quer endireitar o mundo. Em Jesusalém, Silvestre Vitalício e o serviçal Zacaria Kalach, escudeiro nos modernos dizeres, querem sair da História, da selva dos tempos modernos. Nos dois a viagem. Num, do imaginário à realidade, noutro, da realidade crua, sangrenta, ao imaginário interior.
Algo nos perturba nas primeiras páginas de Jesusalém: o título e os Livros - divisores de capítulos, alusão aos livros biblícos. À partida somos perseguidos por essa imagem secular e tutelar de Jesus, o Cristo de uma moral, de uma teologia. Perguntamo-nos se a alusão aos Livros - Um, Dois e Três -, é o egresso, a saída dos livros canónicos em direcção ao mundo do Cristo descrucificado, ou um artificio da efabulação, um jogo de espelhos? A poeta Sophia de Mello Breyner Andresen não nos ajuda muito ao dizer que “Escuto mas não sei⁄ Se o que oiço é silêncio ⁄ Ou deus”. Mas as dúvidas dissipam-se quando o emblemático Silvestre Vitalício convoca os eremitas e anuncia que a terra da iniciação chamar-se-á Jesusalém, e os que nela irão conviver serão desbaptizados.
À excepção do mais novo, por sinal o narrador, os principais personagens da trama convertem-se a nova ordem. Orlando Macara, passa a Tio Aproximado; Olindo Ventura a Ntuzi-sombra; Ernestinho Sobra a Zacarias Kalach; Mateus Ventura A Silvestre Vitalício. O mais novo mantêm-se como mwanito, diminutivo de rapaz em chissena, língua do centro do país, por o pai achar que “…ainda está nascendo”. Formaliza-se, na ordem simbólica, o destino dos personagens, dando, por conseguinte, sinal de partida e coerência ao que Vitalício dissera ao Mwanito, o afinador de silêncios: “…vocês não podem sonhar nem lembrar. Porque eu próprio não sonho, nem lembro.” Quer-se inaugurar uma nova ordem, uma nova gramática, uma sintaxe fora do mundo caótico, desordenado, onde outrora viveram. Para tal é preciso instaurar um mundo, uma humanidade no dizer do autor. Jesusalém é o espaço demarcado, o nicho que se quer diferente. “Um dia, Deus nos virá pedir desculpa, diz Vitalício ao grafar, por cima da tabuleta indicativa de Jesusalém, a frase: “Seja bem-vindo, Senhor Deus.”
A abertura dos capítulos e subcapítulos dos Livros comportam, no meu entender, Salmos – permitam-me invocar o sagrado termo para o romance. Tirando as citações do sociólogo e também poeta francês Jean Baudrillard, e do escritor Herman Hesse, Mia elegeu para seus salmos quatro grandes poetas, sendo três do espaço lusófono- as brasileiras Adélia Prado e Hilda Hilst, e a portuguesa Sophia de Mello Breyener Andresen -, e uma de língua castelhana, a argentina Alejandra Pizarnick. Interessante notar na construção do romance, no jogo de afectos e desafectos, a escolha de mulheres poetas para os cantos, e da mulher mãe, amante, esposa, como desencadeadora da trama romanesca. Este jogo entre os vates dos salmos, e os personagens do romance - maioritariamente masculinos -, dá-nos a dimensão indescritível do mundo efabulatório de Mia Couto. Nos cantos, as musas, as deusas, o sagrado feminino expressando-se na mais elevada linguagem: a poesia. No romance, no texto, a negação do feminino, a desacralização da mulher, a diabolização da criadora da vida. Que é isto senão a anfibologia, o jogo de sentidos, a ambiguidade do texto, a razão da literatura?
Diz a poeta Alejandra Pizarnick: “Yo me levanté de mi cadáver, e fui em busca de quien soy. Peregrina de mí…” No romance, pelo contrário, não se busca a identidade, não se procura o eu, quer-se, isso sim, matar a memória, esquecer o mundo vivido, e invocar uma nova ordem que se fundamente no silêncio. Um silêncio com um Deus que Hilda Hilst alvitra como “O Deus de que vos falo ⁄ Não é um Deus de afagos ⁄ É mudo. ⁄ Está só…”. Mas é em Sophia de Mello que está o canto primeiro e último, a voz iniciática em “ Sou o único homem a bordo do meu barco. ⁄ Os outros são monstros que não falam, ⁄ Tigres e ursos que amarrei aos remos, ⁄ E o meu desprezo reina sobre o mar. ”, e o canto último em “ Nunca mais amarei quem não possa viver ⁄ Sempre, ⁄ Porque eu amei como se fossem eternos ⁄ A glória, a luz e o brilho do teu ser, ⁄ Amei-te em verdade e transparência ⁄ E nem sequer me resta a tua ausência, ⁄ És um rosto de nojo e negação ⁄ E eu fecho os olhos para não te ver. ⁄ Nunca mais servirei senhor que possa morrer.” Está dito.
O anátema a uma realidade cruel, predadora, que nos desumaniza com discursos envenenados, máquinas trituradoras de boas consciências com a efemeridade de sonhos adocicados, é sinal de busca de outros horizontes que a nossa consciência, liberta das cartilhas castralizadoras da história, nos vai ditar nessa longa viagem pelo interior de nós mesmos.
Mia está ciente de que não há rincão neste mundo onde a voz humana não possa chegar. Os tempos modernos anularam barreiras, aproximaram mundos, desfizeram mitos. Não há mais mão autocrática que possa travar, por tempo indeterminado, a barreira da comunicação, o fluxo do pensamento. Em Jesusalém a ponte entre mundos nunca foi totalmente anulada, porque o Aproximado aproximou sempre os mundos, ainda que na vertente material, palpável. O mais interessante neste jogo de luzes e sombras, é a quebra dos silêncios advir do corpo de mulher, duma figura feminina transposta de outros oceanos, como que a provar que o mundo é tão grande e ao mesmo tempo pequeno na confluência dos sentimentos. Se o feminino desencadeou a partida, a fuga, o distanciamento, o mesmo feminino veio aglutinar e encadear outras ligações, outros discursos, outros silêncios, outras anarquias. É a Marta, simbolizando o distante ⁄ próximo, que anuncia ao Vitalício que não é o único a sair do mundo: -“ Caro Ventura, uma coisa lhe posso dizer: não foi só o senhor a sair do mundo.” O mundo está a nossa janela.
Se evoquei Cervantes, fi-lo com a deliberada intenção de dizer que a viagem, a procura de significados, é presença constante desde os antanhos da literatura. Se Cervantes guiuo o seu fidalgo pelas terras da Mancha, Aragão e Catalunha, a busca de verdades, encontrou verdades relativas. Em Mia, a viagem é para a cura. E isso torna-se apodíctico quando o personagem Mwanito, diz: “ Deixo de ser cego apenas quando escrevo.” A escrita tornou-se orgânica, transformou-se em mais um dos sentidos do corpo. Sem ela a cegueira é incontornável. E para que isso não aconteça é preciso viajar, viajar sempre no barco da escrita. Mia busca sonoridades, sons que a pauta da vida não grafou. E é nessa viagem infinita, nessa incessante busca do som puro que a literatura, o romance inaugurado por Cervantes há quatro séculos, encontra a sua vida, o seu oxigénio. Com Mia, mais que com os inauguradores de correntes, os exegetas do fim do romance, encontramos o prazer da efabulação, o encanto de criar, de amar a palavra, de usufruir o texto.
ico grato por te ter como lábaro - não o estandarte das iniciais de Jesus Cristo na época de Constantino, a efígie literária nos labirintos do mundo da escrita. Este Jesusalém que se quer como o livro dos livros ensina-nos que nesta selva de desigualdades, de alienação global, de homogeneização de ambições mesquinhas e terrenas, o grande desafio está em abrir até aos limites a grande coutada da vida: a nossa consciência.
- Ungulani Baka Khosa