Wednesday, October 6, 2010

Vamos combater a credulidade (7) Dos da classificação

Sociólogo Elísio Macamo convida-nos à combater a credulidade numa série que está a ser publicada pelo Jornal Notícias, e que será aqui reproduzida na íntegra.


Maputo, Terça-feira, 5 de Outubro de 2010, Notícias

Se eu dissesse que todos os países situados no continente africano são africanos poderia, validamente, concluir também que Moçambique – por se situar também no continente africano – é um país africano. Estou a fazer uma classificação verbal da noção “país africano”, classificação essa que me é facilitada pela convenção geográfica. O que acontece, porém, é que esta facilidade nem sempre existe. E justamente por ela não existir podemos nos tornar bastante crédulos em relação ao debate na esfera pública. Na verdade, há muitos argumentos baseados na classificação verbal na nossa esfera pública e que dependem do uso corrente de certas palavras no quotidiano. Por exemplo, em Maputo dizemos que toda e qualquer pessoa que falta à sua palavra, não se compromete e tem sempre saída para situações difíceis é um “mafioso”. Partindo dessa classificação verbal poderíamos concluir, olhando para um indivíduo que faltasse à palavra, não se comprometesse e sempre tivesse saída para situações difíceis, que essa pessoa é “mafiosa”.

Estamos, portanto, a dizer que uma certa entidade individual contém uma determinada propriedade e que a posse dessa propriedade implica a presença de uma outra propriedade. Se provarmos que uma pessoa tem determinadas características que definimos como sendo “mafiosas”, então essa pessoa é mesmo mafiosa. Isto é normal no quotidiano, na verdade, tão normal que estamos sempre a argumentar dessa maneira. Quando dizemos que o governo é arrogante fazemo-lo em função de premissas classificatórias que supomos estarem presentes na conduta do governo. Reparem, contudo, que estes argumentos baseados na classificação verbal têm um teor normativo muito elevado que pode limitar a discussão. Por exemplo, alguém pode dizer “essa ideia compromete as metas definidas”, logo, “essa ideia está errada”. Este é o ambiente do que, no país, se chama de “seguidismo”, “bajulação”, “yes-man”, “lambe-botismo”, etc.

Há remédios críticos para isto. E são duas perguntinhas. A primeira pergunta é de saber que provas existem realmente de que uma determinada entidade contém determinada propriedade. Por exemplo, que provas existem realmente de que a “conjuntura internacional” contenha as premissas classificatórias que justificariam o uso dessa noção para justificar a alta de preços? A segunda pergunta seria de saber se a classificação verbal contida na premissa classificatória deriva de uma definição objectiva ou de uma definição que pode ser questionada. Por exemplo, eu poderia argumentar que mesmo se de facto a alta de preços constitua uma reacção directa à conjuntura internacional, essa mesma conjuntura pode permitir que o governo comece a fazer coisas que noutras circunstâncias não poderia fazer. Estou a pensar, por exemplo, no relaxamento das medidas de ajustamento estrutural que poderiam permitir outros tipos de intervenção do governo na economia. Estou a ver também a possibilidade de o trigo produzido no país em condições ineficientes ganhe oportunidades no mercado em resultado da alta do produto internacional. Constrangimentos são também oportunidades. O truque é colocar as perguntas certas para se poderem identificar essas oportunidades.

Ora, o que se verificou entre nós quando o governo falou da conjuntura internacional foi simplesmente rejeitar ou aceitar esse argumento. Ninguém – eu também não – teve o cuidado de perguntar de que maneira exacta é que essa conjuntura afecta o país e que novas oportunidades surgem daí. Infelizmente, há quem se deixe vitimizar ou calar a boca por argumentos baseados na classificação verbal. A minha crítica ao discurso anti-corrupção parte do meu desiderato de resistência a estas classificações verbais. Não é que esteja a favor da corrupção ou negue a sua existência; é que me incomoda o elemento normativo que conduz a um clima que o antropólogo português José Teixeira memorávelmente chamou de “denúncia” numa discussão na internet. A minha crítica aos “críticos” parte também do meu desiderato de resistência ao uso descuidado que eles fazem de classificações verbais. Um exemplo particularmente pertinente é o uso de expressões como “democracia”, “injustiça”, “competência”, “corrupção”, “integridade” e várias outras com um teor normativo muito elevado para classificar acções do governo ou a postura dos próprios críticos e, por via disso, colocar um manto de penumbra total sobre os assuntos. Ou seja, o uso destas classificações permite a criação de um ambiente dentro do qual o governo é automaticamente identificado com tudo quanto é contrário à justiça e democracia, enquanto que aqueles que se arrogam a prerrogativa de classificar se identificam automaticamente com tudo quanto é justo e democrático. Este tipo de gente é, por exemplo, muito hostil à pergunta crítica porque ela obriga-nos a diferenciar e quando diferenciamos podemos chegar à conclusão de que uns não são realmente como gostariam de ser vistos. Os distúrbios de 1 de setembro e as reacções que os acompanharam mostram claramente – pelo menos a mim – que muita gente no país que diz ser democrata de democrata tem muito pouco.



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