Estarei ausente do blog por alguns dias. Regresso, em principio, na próxima semana. Deixo-vos este texto "longo" como uma provocação para o debate. Debata-se, mas sem desabafos!
Introdução
Edson da Luz, Azagaia de nome artístico, é um jovem moçambicano, quanto a mim, com faculdade para se afirmar na arte de escrever letras, compor e interpretar música do género hiphop ou simplesmente RAP. Hiphop é um estilo de música popular cujas origens nos remetem para os meios socialmente desfavorecidos, i.e. ghetos maioritariamente negros dos Estados Unidos da América (EUA). A combinação do ritmo, rima poética, e palavreado ao son de batidas (beats) musicais emprestou-lhe o nome de música RAP. Aos Rappers normalmente chama-se-lhes MCs. Na verdade, o MC (Master of Ceremonies) refere-se ao mestre de cerimónia que introduz o DJ (Disc Joker) que vai animar a plateia com a mistura de ritmos, rima poética e canto (voz). Enfim, não pretendo fazer a história da origem do hiphop, aqui, há elementos que não interessa aprofundar para aquilo que são os propósitos deste artigo. Interessa-me, sim, referir a uma característica peculiar do hiphop: a crítica social e/ou intervenção social! O hiphop é uma música de intervenção social, isto é, uma música cujo conteúdo das letras procura desnudar as diversas situações de injustiça social e expor os demais problemas sociais que afectam principalmente as minorias étnicas nos EUA, em particular os afro-americanos. Esta característica não é universal entre os rappers. Como qualquer movimento cultural o hiphop tem várias correntes, ramificações e produziu até sub-culturas. Por exemplo, a sub-cultura do gangstarismo que mais se popularizou pelos efeitos comerciais que gerou, pela vida luxuosa, material, que proporcionou a alguns de seus interpretes, pela “cultura de violência”, entre outras coisas e pela reacção crítica que a sociedade lançou aos gangsta rap. É um tipo de Rap que remetia a um estilo de vida que reclamou a vida de muitos jovens, principalmente, negros americanos e que têm como um dos seus ícones o legendário Tupac Amaru Shakur[1] (1971-1996). 2pac morreu, com apenas 25 anos de idade, crivado de balas. Aqui também não interessa aprofundar estas histórias que até são marginais ao assunto. Devo apenas referir que o hiphop, nas suas diversas sub-culturas, universalizou-se, para não dizer globalizou-se, e em cada contexto foi adquirido características sui-generis desses lugares.
Bom, qual é o propósito, então, de vos contar um pouco da história do hiphop? Pretendo, simplesmente, sugerir uma reflexão geral sobre o sentido – dito “crítico” – da música de Azagaia. Em outras palavras, quero levantar questões sobre a realidade a que a música de Azagaia nos dá acesso, ou se quiserem questiona. Que realidade descreve e como faz essa descrição? É uma maneira razoável de nos apresentar a uma leitura da realidade, digamos, político-social do nosso país? Estamos de acordo com os termos da leitura? Descreve essa realidade da “melhor” maneira possível? As conclusões, talvez, sejam o menos interessante debater, mas como se seja a essas conclusões parece um aspecto fundamental que a nossa espera pública não devia descurar. Azagaia, nas suas músicas, sugere que a realidade politica e social do nosso país apresenta-se de um certa maneira. Concordamos com essa descrição? É sobre isso que este artigo trata.
Realidade versus conhecimento da realidade do país
Sem grandes recursos teóricos, e de forma algo leiga e bem generalista, gostaria de sugerir que existe:
a) por um lado, a realidade (social) do país e;
b) por outro lado, o conhecimento da realidade (social) do país.
Tanto uma como outra são em parte produto das nossas acções, portanto, passíveis de tomarem forma e conteúdo possíveis e ainda não realizados. Quer dizer, a realidade do nosso pais e o conhecimento dessa realidade podem estar sujeitos a nossa intervenção para tomarem formas e conteúdos específicos. O espaço público, a política através do debate de ideias é onde nós podemos negociar – democraticamente, em princípio – os vários futuros possíveis “desejáveis”. O debate de ideias é, portanto, constitutivo e constituinte da sociedade que fomos, somos e podemos vir a ser. Podemos dizer, então e hipoteticamente, que em função da abertura que tivemos para o debate de ideia fomos uma sociedade autoritária (fechada) ou democrática (aberta), para colocar as coisas entre extremos. O desafio que se nos coloca todos os dias é saber para que lado tendemos. Como evitar os inimigos da sociedade aberta, se esta for o nosso desiderato. De novo o próprio debate é chamado como instrumento não só para medir essa tendência, como para destruir os inimigos da sociedade aberta. Tudo isto é para dizer que enquanto sociedade temos que saber debater. Debater, aqui, significa saber avaliar argumentos. O conhecimento que temos da realidade do nosso país depende, portanto, fundamentalmente, da capacidade que temos de avaliar argumentos nas suas diversas maneiras de se apresentar. Se nos dizem, por exemplo, que o nosso país é pobre. Estão basicamente a oferecer-nos uma conclusão. Para sabermos se essa conclusão é plausível temos que avaliar as razões (premissas) que se nos oferecem para tirar tal conclusão(voltarei a este assunto mais adiante). Não podemos é a aceitar que nos digam é pobre porque é pobre e pronto! A maneira como avaliamos esta conclusão e suas premissas vai nos dizer muito sobre o que sabemos do nosso pais. Podemos então questionarmo-nos sobre os modos de produção de conhecimento dessa realidade e sobre a validade do conhecimento que produzimos.
Neste sentido “verdade” ou conhecimento verdadeiro seria aquele conhecimento que representasse razões plausíveis para as conclusões que descrevem o estado do nosso país. Quanto mais fidedignas as razões (premissas) mas fortes as conclusões e o conhecimento que temos do país. O conhecimento seria, portanto, apenas a representação dessa realidade. Podemos imaginar que o trabalho de buscar representações fiéis, conhecimento “verdadeiro”, do país, isto é, o mais próximo possível da realidade “real” deve ser penoso pelo tempo, recursos que requer e, não só, como pela própria complexidade da fenómenos que fazem essa realidade.
Pessoas sem tempo e as vezes sem recursos, grosso modo, aceitam as conclusões, i.é, as representações da realidade do país que se lhes apresentam sem questionar as premissas que sustentam essas conclusões. E depois há daquelas coisas que mesmo não sabendo não impedem que a gente leve uma vida normal. Há mais de 20 anos que não sabemos se o primeiro presidente morreu assassinado ou se o acidente foi mesmo acidente e nem por isso deixamos de viver. Há pessoas que se especializam na busca de explicações para as diferentes dúvidas que temos de vários fenómenos que fazem – e ocorrem n(a) - nossa sociedade. Os cientistas, por exemplo, de modo geral, são os especialistas que se ocupam da produção dessas representações aproximativas da realidade. São avaliadores de premissas. Mas os cientistas não são os únicos, existem outros com diferentes níveis de especialidade.
Os músicos, por exemplo, também interpretam a realidade para aqueles que não têm muito tempo e paciência para tal. Quer dizer, procuram nas suas músicas formular perguntas e dar respostas, de forma artística, que nos dizem o como é a realidade. E alguns de nós servimo-nos desse conhecimento para orientar nossas acções. A pergunta que se pode colocar é: até que ponto estamos satisfeitos com o rigor do conhecimento que algumas leituras (musicais) nos apresentam da nossa realidade? As conclusões, interpretativas, a que essas leituras de como a realidade se apresenta são plausíveis para podermos orientar nossas acções a partir delas? As premissas sob as quais assentam essas conclusões não são discutíveis? Questionáveis? Que estatuto essa descrição da realidade reclama? É o estatuto que lhe compete? Enfim, vamos pensar sobre algumas destas questões a partir das letras das músicas de Azagaia. Atenção! A intenção, fique claro, não é avaliar o mérito e a criatividade artística de Azagaia, que para isso não tenho competência. Quem fizer isso, fá-lo por conta e risco próprio. A intenção é olhar para a música de Azagaia como um artefacto da nossa sociedade, uma representação da realidade e que por isso pode ser analisado, estudado independentemente das motivações. Que realidade e que conhecimento da realidade do país as músicas de Azagaia nos proporcionam?
A verdade das mentiras.
“As mentiras da verdade” foi a primeira música de Azagaia que fez, e ainda faz, muito sucesso de audiência. Recentemente, Azagaia, voltou a carga com uma segunda música “A Marcha” que também está arrastar multidões. Na efervescência do sucesso Azagaia lançou dia 10 de Novembro seu primeiro álbum “Babalaze” (ressaca, traduzido para o Português). Não me parece que por detrás do sucesso de Azagaia esteja apenas o facto de cantar o hiphop. Nesse género musical muitos outros jovens cantores já o haviam antecedido. A aderência, massiva, a música de Azagaia surge pelo conteúdo forte, diga-se pelas conclusões fortes, das suas mensagens.
Um conteúdo, que aos ouvidos de muitos, é de intervenção e crítica social. Azagaia é, portanto, visto como aquele jovem músico que diz a “verdade” tal e qual ela é. Desnuda-a! E como essa “verdade”, alguns acham, não é conveniente para um sector da sociedade Moçambicana, revelá-la publicamente, e de forma desinibida através do rap, torna-se um acto de ‘coragem’. Na verdade Azagaia, como ele próprio reconhece, não inventa nada do que diz, apenas faz eco a aquilo que as pessoas dizem nas esquinas e corredores, portanto, ao conhecimento popular. Aquele conhecimento daqueles que não tem tempo nem paciência para conviver com a dúvida enquanto avaliam as premissas. É um conhecimento do senso comum, portanto, apriorístico, intuitivo, assistemático. Na verdade é um não – conhecimento ou desconhecimento. A zagaia não faz perguntas, dá respostas. E as respostas que nos oferece, não são respostas novas. São respostas que já eram do domínio de toda gente, do senso comum. São essas respostas que estão a reclamar, agora que ritmadas, um estatuto diferente. O estatuto de verdade! Azagaia é aquele jovem cujas músicas nos dizem “verdades”, é assim que muitos o retratam! A sua atitude portanto é de intervenção e crítica social, consideram. Uma critica social que é vista como um acto corajoso, asseveram.
Este artigo questiona esse estatuto de “verdade” das músicas de Azagaia. Até que ponto as suas respostas, as conclusões, são baseadas em premissas plausíveis, fidedignas? O que é, mesmo, música de intervenção social e/ou crítica social? Que características temos que lhes reconhecer para a consideramos como tal? O que está a ser analisado é o que faz do conteúdo da música de Azagaia crítica social e reveladora da “verdade”!
Critica social, falácias e argumentação.
Podia fazer um texto só para explicar os vários sentidos e concepções de crítica social e mesmo assim não dar conta de todos. Melhor evitar, por antecipação, essa frustração e sugerir uma definição que nos permita falar a mesma linguagem. Se eu dissesse que crítica social é uma forma de argumentação? É que argumentar, como já referi antes, é a arte de fornecer razões para as conclusões que tiramos[2]? As razões, claro, em princípio devem ser plausíveis para que as conclusões sejam válidas. A plausibilidade das razões depende de muitos factores de prova, evidência, para que a gente possa aceitar a validade da conclusão. Para quem acha que Deus existe, mesmo sem provas, pelo menos materiais, a fé é tudo que precisa para sustentar tal conclusão. Essas pessoas teriam um regime de “verdade”, isto é, uma maneira de estabelecer o que é “verdade” para elas diferente do daqueles que não baseiam a “verdade” na fé. Para quem tem outros regimes de “verdade”, portanto, aqueles que baseiam as suas conclusões não na fé, mas na razão os critérios para se estabelecer a “verdade” são outros. A evidência empírica é um deles e nem sempre o mais importante, mas fundamental. E se acrescentasse que é uma forma de argumentação que procura confrontar ideias preestabelecidas? Teria deixado algumas coisas de fora? Por exemplo, a ideia de dizer a “verdade”, a ideia de dizer a “verdade” com a frontalidade? Não. Melhor: acho que não! O debate de ideias visa precisamente isso, criticar, confrontar argumentos fracos baseados em premissas falaciosas, e procurar a “verdade” mesmo que essa seja apenas lugar ideal efémero, portanto, sempre por alcançar. A crítica social, intervenção social não se faz dizendo coisas que outros já dizem, em voz baixa, amplificado pelo microfone em jeito de MC. A crítica social não funciona como o argumento da acusação de feitiçaria do tipo "linchatório" cuja fórmula geral é: “só pode ser”!
"Esta velha tem que apontar o feiticeiro. Se não encontramos o feitiço. Então, ela é que é a feiticeira". Este tipo de argumentos é falacioso e problemático. Custou e a ainda custa a vida de muitas pessoas no nosso país. Há muita gente que é linchada por causa deste tipo de raciocínio errado. Os argumentos na base de: [Se X, tem que Y; Se não X só pode ser Z]. Se o meu vizinho comprou um carro novo [X], tem que trabalhar[Y], como como não trabalha, então só pode ter roubado [Z]. "O ministro X é sócio de uma nova empresa, mas quando assumiu as pastas não tinha nenhuma empresa, então só pode ser corrupto. Este tipo de argumento elimina qualquer possibilidade de investigar outras possibilidades. “Só pode ser” é uma condição de exclusividade, Não admite outros possíveis. É este tipo de argumentos de feitiçaria que abundam os versos de Azagaia.
“Que esse Fórum Anti-Corrupção
Tem que apontar os corruptos
Se não encontram corrupção
Então vocês são os corruptos”
Edson da Luz, Azagaia de nome artístico, é um jovem moçambicano, quanto a mim, com faculdade para se afirmar na arte de escrever letras, compor e interpretar música do género hiphop ou simplesmente RAP. Hiphop é um estilo de música popular cujas origens nos remetem para os meios socialmente desfavorecidos, i.e. ghetos maioritariamente negros dos Estados Unidos da América (EUA). A combinação do ritmo, rima poética, e palavreado ao son de batidas (beats) musicais emprestou-lhe o nome de música RAP. Aos Rappers normalmente chama-se-lhes MCs. Na verdade, o MC (Master of Ceremonies) refere-se ao mestre de cerimónia que introduz o DJ (Disc Joker) que vai animar a plateia com a mistura de ritmos, rima poética e canto (voz). Enfim, não pretendo fazer a história da origem do hiphop, aqui, há elementos que não interessa aprofundar para aquilo que são os propósitos deste artigo. Interessa-me, sim, referir a uma característica peculiar do hiphop: a crítica social e/ou intervenção social! O hiphop é uma música de intervenção social, isto é, uma música cujo conteúdo das letras procura desnudar as diversas situações de injustiça social e expor os demais problemas sociais que afectam principalmente as minorias étnicas nos EUA, em particular os afro-americanos. Esta característica não é universal entre os rappers. Como qualquer movimento cultural o hiphop tem várias correntes, ramificações e produziu até sub-culturas. Por exemplo, a sub-cultura do gangstarismo que mais se popularizou pelos efeitos comerciais que gerou, pela vida luxuosa, material, que proporcionou a alguns de seus interpretes, pela “cultura de violência”, entre outras coisas e pela reacção crítica que a sociedade lançou aos gangsta rap. É um tipo de Rap que remetia a um estilo de vida que reclamou a vida de muitos jovens, principalmente, negros americanos e que têm como um dos seus ícones o legendário Tupac Amaru Shakur[1] (1971-1996). 2pac morreu, com apenas 25 anos de idade, crivado de balas. Aqui também não interessa aprofundar estas histórias que até são marginais ao assunto. Devo apenas referir que o hiphop, nas suas diversas sub-culturas, universalizou-se, para não dizer globalizou-se, e em cada contexto foi adquirido características sui-generis desses lugares.
Bom, qual é o propósito, então, de vos contar um pouco da história do hiphop? Pretendo, simplesmente, sugerir uma reflexão geral sobre o sentido – dito “crítico” – da música de Azagaia. Em outras palavras, quero levantar questões sobre a realidade a que a música de Azagaia nos dá acesso, ou se quiserem questiona. Que realidade descreve e como faz essa descrição? É uma maneira razoável de nos apresentar a uma leitura da realidade, digamos, político-social do nosso país? Estamos de acordo com os termos da leitura? Descreve essa realidade da “melhor” maneira possível? As conclusões, talvez, sejam o menos interessante debater, mas como se seja a essas conclusões parece um aspecto fundamental que a nossa espera pública não devia descurar. Azagaia, nas suas músicas, sugere que a realidade politica e social do nosso país apresenta-se de um certa maneira. Concordamos com essa descrição? É sobre isso que este artigo trata.
Realidade versus conhecimento da realidade do país
Sem grandes recursos teóricos, e de forma algo leiga e bem generalista, gostaria de sugerir que existe:
a) por um lado, a realidade (social) do país e;
b) por outro lado, o conhecimento da realidade (social) do país.
Tanto uma como outra são em parte produto das nossas acções, portanto, passíveis de tomarem forma e conteúdo possíveis e ainda não realizados. Quer dizer, a realidade do nosso pais e o conhecimento dessa realidade podem estar sujeitos a nossa intervenção para tomarem formas e conteúdos específicos. O espaço público, a política através do debate de ideias é onde nós podemos negociar – democraticamente, em princípio – os vários futuros possíveis “desejáveis”. O debate de ideias é, portanto, constitutivo e constituinte da sociedade que fomos, somos e podemos vir a ser. Podemos dizer, então e hipoteticamente, que em função da abertura que tivemos para o debate de ideia fomos uma sociedade autoritária (fechada) ou democrática (aberta), para colocar as coisas entre extremos. O desafio que se nos coloca todos os dias é saber para que lado tendemos. Como evitar os inimigos da sociedade aberta, se esta for o nosso desiderato. De novo o próprio debate é chamado como instrumento não só para medir essa tendência, como para destruir os inimigos da sociedade aberta. Tudo isto é para dizer que enquanto sociedade temos que saber debater. Debater, aqui, significa saber avaliar argumentos. O conhecimento que temos da realidade do nosso país depende, portanto, fundamentalmente, da capacidade que temos de avaliar argumentos nas suas diversas maneiras de se apresentar. Se nos dizem, por exemplo, que o nosso país é pobre. Estão basicamente a oferecer-nos uma conclusão. Para sabermos se essa conclusão é plausível temos que avaliar as razões (premissas) que se nos oferecem para tirar tal conclusão(voltarei a este assunto mais adiante). Não podemos é a aceitar que nos digam é pobre porque é pobre e pronto! A maneira como avaliamos esta conclusão e suas premissas vai nos dizer muito sobre o que sabemos do nosso pais. Podemos então questionarmo-nos sobre os modos de produção de conhecimento dessa realidade e sobre a validade do conhecimento que produzimos.
Neste sentido “verdade” ou conhecimento verdadeiro seria aquele conhecimento que representasse razões plausíveis para as conclusões que descrevem o estado do nosso país. Quanto mais fidedignas as razões (premissas) mas fortes as conclusões e o conhecimento que temos do país. O conhecimento seria, portanto, apenas a representação dessa realidade. Podemos imaginar que o trabalho de buscar representações fiéis, conhecimento “verdadeiro”, do país, isto é, o mais próximo possível da realidade “real” deve ser penoso pelo tempo, recursos que requer e, não só, como pela própria complexidade da fenómenos que fazem essa realidade.
Pessoas sem tempo e as vezes sem recursos, grosso modo, aceitam as conclusões, i.é, as representações da realidade do país que se lhes apresentam sem questionar as premissas que sustentam essas conclusões. E depois há daquelas coisas que mesmo não sabendo não impedem que a gente leve uma vida normal. Há mais de 20 anos que não sabemos se o primeiro presidente morreu assassinado ou se o acidente foi mesmo acidente e nem por isso deixamos de viver. Há pessoas que se especializam na busca de explicações para as diferentes dúvidas que temos de vários fenómenos que fazem – e ocorrem n(a) - nossa sociedade. Os cientistas, por exemplo, de modo geral, são os especialistas que se ocupam da produção dessas representações aproximativas da realidade. São avaliadores de premissas. Mas os cientistas não são os únicos, existem outros com diferentes níveis de especialidade.
Os músicos, por exemplo, também interpretam a realidade para aqueles que não têm muito tempo e paciência para tal. Quer dizer, procuram nas suas músicas formular perguntas e dar respostas, de forma artística, que nos dizem o como é a realidade. E alguns de nós servimo-nos desse conhecimento para orientar nossas acções. A pergunta que se pode colocar é: até que ponto estamos satisfeitos com o rigor do conhecimento que algumas leituras (musicais) nos apresentam da nossa realidade? As conclusões, interpretativas, a que essas leituras de como a realidade se apresenta são plausíveis para podermos orientar nossas acções a partir delas? As premissas sob as quais assentam essas conclusões não são discutíveis? Questionáveis? Que estatuto essa descrição da realidade reclama? É o estatuto que lhe compete? Enfim, vamos pensar sobre algumas destas questões a partir das letras das músicas de Azagaia. Atenção! A intenção, fique claro, não é avaliar o mérito e a criatividade artística de Azagaia, que para isso não tenho competência. Quem fizer isso, fá-lo por conta e risco próprio. A intenção é olhar para a música de Azagaia como um artefacto da nossa sociedade, uma representação da realidade e que por isso pode ser analisado, estudado independentemente das motivações. Que realidade e que conhecimento da realidade do país as músicas de Azagaia nos proporcionam?
A verdade das mentiras.
“As mentiras da verdade” foi a primeira música de Azagaia que fez, e ainda faz, muito sucesso de audiência. Recentemente, Azagaia, voltou a carga com uma segunda música “A Marcha” que também está arrastar multidões. Na efervescência do sucesso Azagaia lançou dia 10 de Novembro seu primeiro álbum “Babalaze” (ressaca, traduzido para o Português). Não me parece que por detrás do sucesso de Azagaia esteja apenas o facto de cantar o hiphop. Nesse género musical muitos outros jovens cantores já o haviam antecedido. A aderência, massiva, a música de Azagaia surge pelo conteúdo forte, diga-se pelas conclusões fortes, das suas mensagens.
Um conteúdo, que aos ouvidos de muitos, é de intervenção e crítica social. Azagaia é, portanto, visto como aquele jovem músico que diz a “verdade” tal e qual ela é. Desnuda-a! E como essa “verdade”, alguns acham, não é conveniente para um sector da sociedade Moçambicana, revelá-la publicamente, e de forma desinibida através do rap, torna-se um acto de ‘coragem’. Na verdade Azagaia, como ele próprio reconhece, não inventa nada do que diz, apenas faz eco a aquilo que as pessoas dizem nas esquinas e corredores, portanto, ao conhecimento popular. Aquele conhecimento daqueles que não tem tempo nem paciência para conviver com a dúvida enquanto avaliam as premissas. É um conhecimento do senso comum, portanto, apriorístico, intuitivo, assistemático. Na verdade é um não – conhecimento ou desconhecimento. A zagaia não faz perguntas, dá respostas. E as respostas que nos oferece, não são respostas novas. São respostas que já eram do domínio de toda gente, do senso comum. São essas respostas que estão a reclamar, agora que ritmadas, um estatuto diferente. O estatuto de verdade! Azagaia é aquele jovem cujas músicas nos dizem “verdades”, é assim que muitos o retratam! A sua atitude portanto é de intervenção e crítica social, consideram. Uma critica social que é vista como um acto corajoso, asseveram.
Este artigo questiona esse estatuto de “verdade” das músicas de Azagaia. Até que ponto as suas respostas, as conclusões, são baseadas em premissas plausíveis, fidedignas? O que é, mesmo, música de intervenção social e/ou crítica social? Que características temos que lhes reconhecer para a consideramos como tal? O que está a ser analisado é o que faz do conteúdo da música de Azagaia crítica social e reveladora da “verdade”!
Critica social, falácias e argumentação.
Podia fazer um texto só para explicar os vários sentidos e concepções de crítica social e mesmo assim não dar conta de todos. Melhor evitar, por antecipação, essa frustração e sugerir uma definição que nos permita falar a mesma linguagem. Se eu dissesse que crítica social é uma forma de argumentação? É que argumentar, como já referi antes, é a arte de fornecer razões para as conclusões que tiramos[2]? As razões, claro, em princípio devem ser plausíveis para que as conclusões sejam válidas. A plausibilidade das razões depende de muitos factores de prova, evidência, para que a gente possa aceitar a validade da conclusão. Para quem acha que Deus existe, mesmo sem provas, pelo menos materiais, a fé é tudo que precisa para sustentar tal conclusão. Essas pessoas teriam um regime de “verdade”, isto é, uma maneira de estabelecer o que é “verdade” para elas diferente do daqueles que não baseiam a “verdade” na fé. Para quem tem outros regimes de “verdade”, portanto, aqueles que baseiam as suas conclusões não na fé, mas na razão os critérios para se estabelecer a “verdade” são outros. A evidência empírica é um deles e nem sempre o mais importante, mas fundamental. E se acrescentasse que é uma forma de argumentação que procura confrontar ideias preestabelecidas? Teria deixado algumas coisas de fora? Por exemplo, a ideia de dizer a “verdade”, a ideia de dizer a “verdade” com a frontalidade? Não. Melhor: acho que não! O debate de ideias visa precisamente isso, criticar, confrontar argumentos fracos baseados em premissas falaciosas, e procurar a “verdade” mesmo que essa seja apenas lugar ideal efémero, portanto, sempre por alcançar. A crítica social, intervenção social não se faz dizendo coisas que outros já dizem, em voz baixa, amplificado pelo microfone em jeito de MC. A crítica social não funciona como o argumento da acusação de feitiçaria do tipo "linchatório" cuja fórmula geral é: “só pode ser”!
"Esta velha tem que apontar o feiticeiro. Se não encontramos o feitiço. Então, ela é que é a feiticeira". Este tipo de argumentos é falacioso e problemático. Custou e a ainda custa a vida de muitas pessoas no nosso país. Há muita gente que é linchada por causa deste tipo de raciocínio errado. Os argumentos na base de: [Se X, tem que Y; Se não X só pode ser Z]. Se o meu vizinho comprou um carro novo [X], tem que trabalhar[Y], como como não trabalha, então só pode ter roubado [Z]. "O ministro X é sócio de uma nova empresa, mas quando assumiu as pastas não tinha nenhuma empresa, então só pode ser corrupto. Este tipo de argumento elimina qualquer possibilidade de investigar outras possibilidades. “Só pode ser” é uma condição de exclusividade, Não admite outros possíveis. É este tipo de argumentos de feitiçaria que abundam os versos de Azagaia.
“Que esse Fórum Anti-Corrupção
Tem que apontar os corruptos
Se não encontram corrupção
Então vocês são os corruptos”
Analisemos este verso retirado da música “A marcha[3]”. Qual é ideia que nos é sugerida pelo verso? A essa ideia geral dar-lhe-emos o nome de conclusão. A conclusão é na verdade complexa, aqui, pois depende de uma condição. A condição é em si é problemática porque circular, senão vejamos: "O fórum Anti-corrupção tem (imperativo) que apontar os corruptos [X]. Pressupõe-se que esses corruptos existam, é só uma questão de apontá-los. No entanto no verso seguinte diz-se, também numa frase condicional: “Se não encontram corrupção”, então – e esta é a grande conclusão –: vocês, portanto o fórum Anti-corrupção, são os corruptos. Por outras palavras, então vocês só podem ser os corruptos.
É um argumento bastante problemático, pelas razões que expus antes. Vamos pegar num exemplo diferente para percebermos onde reside o problema. Coloquemos a polícia no lugar do fórum e ladrões no lugar dos corruptos. O argumento ficaria assim:
Que essa polícia
Tem que apontar os ladrões.
Se não encontram (neste caso o substantivo equivalente a corrupção seria) os ladrões.
Então; vocês (a polícia)são os ladrões.
O facto da polícia não apontar (premissa 1) ou encontrar (premissa 2) ladrões não faz da polícia, necessariamente, ladra [Conclusão]! O mesmo exercício pode ser feito em relação ao fórum. Este é apenas um dos vários erros de raciocínio que encontramos nas letras de Azagaia e que passam como “verdades”. Não estou a sugeir que as letras de Azagaia, e de qualquer outro músico, devem ser soligismos lógicos. Isso talvez deixa-se de ser música. O que estou a sugerir é que devemos ter cautela antes de chamarmos este tipo argumentação de revelação da “verdade”!
Tomemos mais alguns exemplos. Desta vez porém não vou ser minucioso na explicação das falácias. Vou apenas retorquir.
Extractos da Música:“As mentiras da verdade[4]”.
E se eu te dissesse
Que Samora foi assassinado
Por gente do governo que até hoje finge que procura o culpado
E que foi tudo planeado
Pra que parecesse um acidente e o caso fosse logo abafado
Análise:
Insinuação: E se eu dissesse que...
Conclusão: Samora foi assassinado.
Premissa (1): Por gente do governo que até hoje finge que procura o culpado.
Por mais conveniente que seja. Por mais, aliviante que seja, ainda não se produziu evidência, material, suficiente para que se considere a morte de Samora um assassinato, muito menos por membros do governo. De que governo? É claro que isso não invalida as fortes convicções, a fé, que muitos têm, dadas as circunstâncias, a conjectura histórico-política em que a morte ocorreu, de achar que foi assassinato. Mas uma coisa é convicção, fé, e outra são provas/evidência.
Premissa (2):
a) E que tudo foi planeado
b) para que tudo parecesse um acidente e o caso fosse logo abafado.
Tudo isto dá uma boa teoria de conspiração. O mesmo se aplicaria aos demais casos que não preciso mencionar aqui, para os quais não temos evidencia suficiente, para dar uma explicação que nos satisfaça. Ausência de explicação não autoriza a explicação aparente. Ausência de explicação plausível autoriza-nos a alimentarmos mais dúvidas sobre as explicações imediatas e a investigar mais. Como diz o decano da sociologia, em Moçambique, Carlos Serra: duvidai e indagai! Quando a dúvida te sufoca: desabafe! O desabafo parece ser um impulso, uma necessidade, que deriva de alguma coisa na nossa sociedade que precisa ser compreendida. Essa coisa que nos inibe de nos engajarmos numa cultura de debate sensata e menos propícia aos erros de raciocínio. Por isso não acho que os Azagaias deste país estejam a agir de má fé. Não. Ao intervir com todo aquele vigor e cheio de certezas com que os Azagaias do nosso país fazem, fazem-no convictos de que é o melhor que fazem para o país. O preocupante, na minha opinião, é quando a onda de desabafo atinge aqueles cuja tarefa seria justamente a de ser mais moderados na avaliação dos argumentos. Quando todos começamos a fumar o cachimbo do desabafo, até os sociólogos, ninguém mais a resta para pensar este país de cabeça fria.
Desabafo como eclipse da razão!
A razão está para a crítica social, assim como a emoção esta para o desabafo. E ai parece residir o cerne da questão. Uma explicação que nos satisfaça, uma explicação que preencha o vazio e retire a angústia de vivermos sem algumas respostas para preocupações que de alguma maneira no nosso entender exigem, têm que ter, uma explicação é como ópio do povo. Tem um efeito analgésico, alienante eclipsa a nossa razão e acalenta o espírito. É essa angústia, essa ansiedade acumulada que cria as condições sociais propícias para que as pessoas não se dêem maçada de avaliar a plausibilidade das respostas que são avançadas paras as várias perguntas e incógnitas que têm. Não conseguem domesticar e conviver com a dúvida. Assim quando surge alguém a lançar aos gritos esses males para fora, na multidão dos espectáculos, assim como se faz na Igreja Universal ao exorcizar os espíritos há uma sensação de alívio. Um desabafo! Na análise das letras de Azagaia antecedeu-me o Sociólogo Elísio Macamo[5]. Macamo faz um exercício de distinção de crítica social de desabafo mostrando as virtudes e as condições de possibilidade da primeira para emancipação e os perigos do segundo que é a alienação. Pretendo introduzir um outro elemento. A ideia de que o desabafo, o “tubo de escape”, como lhe chama o próprio Azagaia, é contrariamente ao que lhe chamam uma anti-crítica social. A crítica social é assente na razão, o desabafo na emoção. O problema é que enquanto a crítica social têm potencialidades emancipadoras, o desabafo é potencialmente ecliptíco.
[1] Tupac Shakur. Wikipedia:Free Encyclopedia. [Online]. Disponível. [http://en.wikipedia.org/wiki/Tupac_Shakur, 12 Novembro 2007].
[2] Weston , A. (1996). A arte de argumentar. Lisboa: Gradiva.
[3] Fonte: AZAGAIA (3) Letra da Canção “ A Marcha”. Online: Disponível.[ http://oficinadesociologia.blogspot.com/2007/11/azagaia-3-letra-da-cano-marcha-fim.html, 12 Novembro 2007].
[4] Fonte. Música: As mentiras da verdade. Online: Disponível. [http://circulodesociologia.blogspot.com/2007/05/msica-as-mentiras-da-verdade.html, 12 Novembro 2007]
[5] Macamo, E. Jornal Notícias: Crítica Social e Desabafo. Online. Disponível. [http://www.jornalnoticias.co.mz/pls/notimz2/getxml/pt/contentx/40124, 12 Novembro 2007]
* Foto retidara daqui: http://ivstreet.com/index.php?option=com_content&task=view&id=149&Itemid=41
8 comments:
Bravo, caro Patrício. Adorei muito esta postagem. Certas coisas que dizes só me lembram algumas páginas do livro do nosso caro Elísio " Trepar o País pelos Ramos". Neste livro há boas informações acerca da problemática da argumentação. Aliás, tu também te debruças acerca desta problemática e, também de forma interessante. Parabéns!!
caro patricio! texto interessante o teu. tenho alguns comentarios, ainda nao bem elaborados, mas que limitam as nossas famosas certezas, quer academicas ou populares. mas acho que estas a fazer um belo exercicio de exigir um ultra surrealismo a quem as vezes tem a arte como espelho e nao ciencia. e como bem dizes, melhor nao comecar um debate que te rouba tempo para investigar.
Bela reflexão. Obed L. Khan
"É que argumentar, como já referi antes, é a arte de fornecer razões para as conclusões que tiramos"
desde qdo é que o condicional é uma conclusao?
o que legitima a conclusao do seu "se eu dissesse"?
acreditar que Deus existe é um facto. agora se eu dissesse que Deus existe é "nada".
Toda a sua argumentaçoa é baseada num falacia!!!
Até parece que este país precisa sempre de novas profecias ou profetas, para acalentar o espirito. Veja-se como prolifera o negócio da fé. É o país das crenças, das profecias e dos profetas. A sociedade se produz e reproduz através del[es]as. Para o caso em apreço, fico sem saber se é o perfil ousado do Azagaia ou que ele canta, que provoca todo este alvoroço; se é o criador ou a obra, que encanta as pessoas. O Azagaia ou o que ele canta, é a nova[o] profe[ta]cia que vem substituir outr[o]as já em crise. A título de exemplo, “o deixa andar”, “combate a pobreza absoluta”, “combate a corrupção”, ou o o Jeremias Ngwenha, Gpro Fam,... Esta nossa maldita mania de querermos falar sempre através dos outros; de usarmos os outros como os mensageiros das nossas angústias; de acreditar que os outros é que farão o nosso trabalho; que cumprirão com o nosso dever. No mundo da mudez, quem entende a lingua dos mudos, vira martir. Todavia, não pretendo com esta observação retirar o mérito ao AZAGAIA.
JJM
Bravo Azagaia! Porque alguem ha-de pensar que Azagaia nao tem merito de pensar e escrever, o ve e o que sente? O senhor que quis insinuar que O Azagaia e usado por alguem deve estar doente! Nao pretendo ser advogado do Azagaia mas criticar a mania de muitos pensarem que ha quem tenha um cunho de estar a escrever e pensar pelos outros!
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