Terminou (?) a reflexão, que qualifiquei de interessantissima, que o Sociólogo Elísio Macamo, brilhantemente, iniciou sobre a nossa sociedade a partir de um artefacto tecnológico- o CELULAR! Creio que muitos acompanharam o debate com interesse. Acima de tudo, espero que tenham podido apreender a idea de que a sociologia – pode ser um excitante “passatempo indivídual”(Berger) – não é, necessáriamente, uma arma política para combates revolucionários, mas um exercício, eminetemente, reflexivo e tentativo de tornar inteligíveis a relação entre o indivíduo e a sociedade e os artefactos por estes produzidos! Bom, esse é o meu entendimento. Há outros, mais praxiológicos!. Para terminar, e com a devida vénia, reproduzo na íntegra o texto final da série. Bom proveito!
O Celular [10] FIM da série
A etnografia do celular
Tudo tem um fim, só o programa do governo é que tem vários. Comecei esta série com referências a Simmel, o que me valeu sugestões de traduzir o texto para português. Tarefa grande, sobretudo quando a tradução envolve não só o domínio das duas línguas (principalmente da língua para a qual se traduz) como também envolve um entendimento da tese do autor. Este último aspecto é um problema. São poucos os que podem dizer, com confiança e certeza, que entendem Simmel. Eu não faço parte desse clube. Já li e reli passagens centrais do texto a que me referi aqui ao longo dos últimos dez anos, li dezenas de recensões críticas e li muita coisa inspirada em Simmel. Mesmo assim, não tenho a sensação de perceber muito bem para onde ele nos quer levar. Só tenho a vaga ideia de que ele está a dizer coisas muito importantes e que estão ligadas à estrutura (ou forma para usar a sua própria terminologia) à interacção.
Algo me diz, por exemplo, que a filosofia do dinheiro é uma espécie de metáfora da energia que alimenta a nossa cultura através da descrição do seu símbolo mais importante. Nessa ordem de ideias, o dinheiro seria o símbolo da relatividade inesgotável da existência, isto é dos vários pontos de vista e perspectivas que cada momento da vida produz ou torna possível. O dinheiro é um mercado de possibilidades que abre os nossos olhos a tudo quanto é possível fazer e se torna possível imaginar. Ler Simmel significa, receio, ficar incoerente no momento da partilha do lido. Em postagens anteriores referi-me insistentemente ao embate entre o subjectivo e o objectivo, sobretudo quando falava da relação entre o indivíduo e a cultura. Simmel diz que o valor, por exemplo, tem um carácter objectivo que se constitui, porém, no carácter subjectivo do desejo. Ou por outra, o valor não é possível sem a valorização, o que equivale a dizer que o valor se constitui no momento em que cada um de nós atribui importância e escolhe certas coisas em detrimento de outras. O dinheiro traduz simplesmente a relação de troca que manifesta os diferentes pesos que damos ao nosso desejo.
A pergunta que me coloquei a mim mesmo foi de saber que relação é que o celular, no nosso contexto, traduz. É evidente para mim que o celular não vale pela sua utilidade como aparelho de comunicação, embora depois de várias interpelações recebidas do André José e do Patrício Langa, deva enfraquecer este reparo. Não obstante, reduzir o celular a essa função tão profana seria o mesmo que reduzir a pertinência da universidade ao combate contra a pobreza absoluta. Yowé! Há alguma coisa dentro da nossa sociedade e, sobretudo, dentro da estrutura das nossas relações sociais que elevou o celular a um outro patamar de valor que recusa a sua redução à utilidade profana. Que coisa é essa?
Penso que é a relação entre o indivíduo e o colectivo ou, para melhor falar, a negociação de um espaço individual dentro de um movimento insistente que procura fazer diluir o individual no colectivo. Aqui levantam-se dois problemas bicudos que vou tratar, rapidamente, a partir de dois pontos de vista, a saber (i) estético e (ii) político. O problema estético é mais simples e reduz-se essencialmente à questão de saber de que maneira o celular documenta o nosso sentido estético. O que é importante para os moçambicanos? Deixem-me ilustrar isto com uma experiência recente na companhia do Filimone Meigos e de dois colegas cabo verdianos, a Carla Santos e o Felisberto Martins, em Maputo. Estávamos a fazer um pequeno exercício de observação no âmbito de um seminário de métodos organizado pelo CODESRIA e pelo Centro de Estudos Africanos. Fomos observar o comportamento de peões e automobilistas em dois cruzamentos de estradas, um dos quais com semáforo. Notámos uma coisa trivial, mas ao mesmo tempo bastante esclarecedora. Com efeito, notámos que o cruzamento com semáforo alargava o espaço de acção dos peões, pois ao contrário do cruzamento sem semáforo, onde eles tinham que olhar para todos os lados, no com semáforo até podiam atravessar mesmo no epicentro, pois sabiam de onde esperar ou não esperar viaturas. Isto é, a imposição de uma regra/norma longe de limitar os indivíduos, alargava os seus raios de acção.
O mesmo fenómeno se observa em relação ao celular. É um objecto para comunicação que nos liberta da co-presença física e do telefone fixo. Mas ao mesmo tempo abre possibilidades para mais coisas que só ficam visíveis quando já temos o objecto em mãos. Porque é que os peões não interpretaram a regra (e norma) estabelecida pelo semáforo como uma limitação e não como uma libertação? O mesmo se passa com os automobilistas, curiosamente. Igualmente, porque é que nós interpretamos o celular como um objecto que nos permite fazer tudo menos (essencialmente) comunicar (dizendo coisa com coisa) com outros em momentos (socialmente) relevantes? Penso que a resposta a esta pergunta passa por percebermos o nosso sentido de estética, isto é o que é importante para embelezar a nossa vida. A questão, para ser ainda mais directo e chato, é de saber porque nos deixamos tão facilmente levar pelo que é supérfluo quando lidamos com artefactos da modernidade? Em tempos publiquei uma série de artigos no jornal Notícias a reflectir sobre o que chamei de presentes envenenados. Isso mesmo. Porque é que o que é (ou poderia ser) bom tem a tendência de ficar mau entre nós?
O ponto de vista político está de alguma maneira ligado a este problema estético. Na verdade, a presença do celular coloca desafios à própria sociedade. Usar celular significa domesticá-lo e domesticar significa negociar regras e formas de uso com as outras pessoas que partilham estes espaços connosco. Como se faz isso no nosso país? Que mecanismos existem no seio da nossa sociedade que nos permitem determinar as condições de uso de um objecto como este? Não estou a sugerir que se crie uma instituição para nos dar instrucções sobre como usar o celular. Estou apenas interessado em saber como a nossa sociedade lida com a inovação, como ela negoceia novas formas de sociabilidade, enfim, como chegamos a consensos sobre maneiras aceitáveis de estar na vida.
Também no jornal Notícias já publiquei em tempos uma série de artigos em que defendia a ideia de que um dos maiores desafios que se colocava à nossa sociedade eram as boas maneiras. Referia-me à irresponsabilidade política, por exemplo, para perguntar que instâncias haveria na nossa sociedade que pudessem apresentá-la como manifestação de falta de respeito e forçassem uma espécie de mal-estar na sociedade. As más maneiras, na verdade, são o pano de fundo de muita coisa que temos dificuldades em explicar, mesmo ao nível político. Não sei se sou o único que se chateia constantemente em Maputo com automobilistas que, impávidos e serenos, páram no meio de uma das faixas de rodagem, acendem a emergência e, pelo menos na Julius Nyerere ao lado do Nautilus, vão comprar pão na padaria aí ao lado sem o mínimo de consideração por todos os carros que têm que fazer manobras perigosas para contornar o obstáculo. Sou o único? Não? Porque não fazemos nada? É porque também fazemos o mesmo? Ah, está bem.
Fazer a etnografia do celular – por mais incompleta que esta esteja – é, quanto a mim, não só enumerar as coisas que se tornam possíveis com ele e o que é que fazer essas coisas significa para a estrutura das nossas relações, mas acima de tudo interrogar-se sobre o papel da política como espaço de realização de cidadania. Volto, portanto, ao grande desafio que a negociação de espaços de afirmação individual constitui num contexto em que o colectivo se insinua de forma grosseira e interrogo-me sobre as condições que precisam de ser criadas (por quem?) para que essa afirmação não degenere (o caso do vídeo explícito do cantor Ziqo é um exemplo paradigmático que se pode apreender facilmente), não estimule comportamentos nocivos à responsabilidade pública e, acima de tudo, não conduza a sociedade a fazer desvio de aplicação no uso de artefactos que, em princípio, estão aqui para nos facilitar a vida.
Aqui, e como quase sempre, só aflorei as questões. Alguém com pena de mim e do país pode prosseguir com algo mais sólido e substancial que nos ajude a perceber melhor o que está em questão. Acho que o celular, para além de todo o ridículo das formas de uso a que nos submete, ou é submetido, é uma metáfora excelente de um desafio que a nossa sociedade ainda não começou a tomar seriamente em consideração. O mesmo conjunto de perguntas que podemos colocar ao celular, podemos também colocar a várias outras coisas. Peguem nas seguintes coisas: democracia, responsabilidade, legalidade, veículo automóvel, cerveja e música hiphop. Agora substituam a palavra “celular” por cada uma delas nas perguntas que se seguem: que usos do celular se afirmam e impõem no nosso contexto para além do uso normal do objecto? Que aspectos da organização e consistência da nossa sociedade tornam esses usos possíveis? Que condições seriam necessárias para que não fóssemos objecto do celular? Estão a ver?
4 comments:
'Peguem nas seguintes cosas: democracia, responsabilidade, legalidade, veículo automóvel, cerveja e música hiphop.' Com todo o respeito, 1. permita-me ousar acrescer: Marrabenta, Estado, Escola (da primaria a Universidade). 2. 'que usos do celular se afirmam e impõem no nosso contexto para além do uso normal do objecto?'. Aqui eu questionaria o normal, o que e normal e qual o seu processo de constituicao? Emidio Gune
Oi. Gune.
De ti não podia esperar outra coisa, senao que engrossaces a lista.
Bom, mesmo assim, devem estar a faltar mais ‘presentes envenados’ a lista.
Parece-me que o sentido que E.M quis dar ao ‘normal’ não é aquele normal - normal.Quer dizer, um sentido normativo. O normal do E.M aqui no meu entender refre-se ao corrente, usual, habitual. a não ser que estejas a perguntar o que é corrente, comum, usual, quotidiano, habitual etc
Enfim, esperemos que E.M passe por aqui e clarifique isso.
Abraço
caro patrício, caro emídio gune, a pergunta faz muito sentido e aponta para um problema que se levanta a partir do momento que utilizamos a palavra "normal". o sentido em que a usei é o que apontas, patrício, mas podemos dizer que o tempo que já decorreu desde a introducao do celular na nossa sociedade tornou "normal" o seu uso "anormal"...
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