Do Professor Lourenço do Rosário, Reitor da Universidade A-Politécnica, surge uma reflexão interessante sobre o Ensino Superior e a cooperação internacional. Vamos ler e possivelmente comentar e debater este assunto aqui. SOBRE a questão dos estudos superiores em África e sua constituição em espaço universitário, ela ainda não se tornou um debate propriamente dito.
Mas importa levantar, pois a mesma tem a ver com o problema recorrente de se considerar que as Universidades Africanas actualmente não possuem a qualidade que se pretende, porque as estruturas socioeconómicas dos estados em que as mesmas se inserem são muito frágeis e atrasadas.
O conceito qualidade é um conceito abstracto e o mesmo deve poder ser caracterizado com contornos que permitam aferir comparativamente, e não como uma medida absoluta. Eu não posso pura e simplesmente afirmar que a Universidade tal ou tal tem qualidade, porque esta ou aquela se encontra inserida neste ou naquele país. De que ponto de partida eu estabeleço a minha aferição? Esta questão de qualidade tem sido debatida em outras áreas. Alguns colegas das universidades ocidentais na área das Letras, por exemplo, olham com muita desconfiança a produção literária dos africanos, considerando a literatura africana como sendo uma literatura sem arte e apresentam vários argumentos, entre os quais apontam a sua colagem demasiado evidente às questões históricas, sociológicas e políticas, como sendo matéria metafórica a preencher os seus conteúdos, longe do aprimoramento de linguagem, longe do enfoque filosófico e longe da preocupação com a estética. Em última análise, que não é comparável um romance africano a um romance francês, quando se fala da qualidade literária. Perante uma recorrência desta natureza, no mínimo o que devemos fazer é não entrar no debate, porque me parece que o raciocínio está inquinado à partida por presunção de superioridade cultural. Se trouxermos esta questão para a discussão sobre a qualidade das Universidades, colocando na balança de comparação as Universidades Africanas e as Universidades Ocidentais, estaremos perante um debate inútil. Relembro aqui aquilo que atrás disse sobre os estágios dos estudos superiores em função do estágio de cada grupo social. Bem sei que para trás as sociedades eram mais fechadas e o seu processo de desenvolvimento era mais endógeno do que exógeno, bem sei igualmente que as teorias da globalização tendem a pressionar a adopção das posturas em que a periferia deve adoptar os modelos do centro.
O MIT americano e a Universidade de Singapura estabeleceram um acordo de cooperação ao mais alto nível na produção de programas de pós-graduação. É um dado adquirido e todos aceitam o pressuposto de que os quadros produzidos nesta aliança são do maior valor mundial em termos de qualidade. Os factores que assim o determinam podem não ser eminentemente universitários ou de apuro científico ou técnico no que toca a competências, mas também aqueles que têm a ver com os altos valores cobrados, que podem ascender a quase meio milhão de dólares, e que, por isso, só as elites económicas e as empresas de grande podem aspirar ao ingresso nesses programas, reproduzindo modelos de aferição de auto-valorização. Os quadros produzidos pela Associação de MIT americana e da Universidade de Singapura não servem para a realidade africana. Assim, é natural que a Universidade de Singapura tenha modelos de formação que entrem em pé de igualdade com a MIT para produzir programas conjuntos de pós-graduação de ponta oferecidos a todo mundo. Contudo, já não se torna normal que uma Universidade Africana esteja em pé de igualdade com estas mesmas universidades, o que não quer dizer que a qualidade ou o modelo de qualidade seja necessariamente aquele que é oferecido pela Associação da Universidade de Singapura e a MIT e que nós, os Africanos, se não atingirmos esse patamar, estamos sem qualidade. Por isso, a questão da qualidade é sincrónica e contextual, ela deve ser vista em cada momento e em cada espaço, e naquele momento. Só esta postura nos vai permitir que, passo a passo, possamos de uma forma racional e com conhecimento de causa aspirar a patamares cada vez mais avançados com o avanço do conhecimento por nós próprios dominado.
Muitos países africanos, com vários recursos naturais, têm sido acusados de assinar contratos desastrosos para exploração desses mesmos recursos, porque aqueles que têm a responsabilidade de negociar os dossiês sobre o acesso a esses mesmos recursos, ou são corruptos ou, se não são corruptos, ignoram os mecanismos mais adequados para negociações vantajosas para a sua própria sociedade, por falta de preparação sobre os processos negociais. E, consequentemente, consideram correctas as propostas que a contraparte apresenta, que exercendo ao mesmo tempo o papel de jogadores e árbitros colocam na mesa. Isto é verdade, mas esta situação não resulta da falta de qualidade das nossas Universidades que devem ter formado previamente tais negociadores, mas sim do processo desfasado entre o acesso ao conhecimento do domínio da natureza e dos recursos naturais dos nossos países e aquilo que se passa nos países que demandam as nossas matérias-primas.
A história tem-nos demonstrado que sempre que se pretende queimar etapas, os efeitos negativos são maiores que os positivos e que as forças produtivas se devem desenvolver conforme a conjuntura. Quer isto dizer que se as nossas Universidades não estão ainda apetrechadas de modo a produzir conhecimento sobre a nossa realidade e riqueza natural e como consequência não estão preparadas para formar cidadãos que possam dominar as linguagens negociais ou execução de actividades nestas áreas, isso não significa que as Universidades não tenham qualidade, não têm qualidade sim para este dossiê concreto, porque o Estado, ele próprio, não se apetrechou para o efeito, ou não buscou soluções alternativas para se preparar para uma situação para a qual não estava prevenido.
No período pré-colonial, em África, houve actividades relacionadas com estudos superiores prósperos e reconhecidos pelo mundo então conhecido. É disso exemplo a Universidade de Tumbucto, no Mali, as Universidades do Cairo, em Alexandria, Ahzar, no Egipto e Karaouine, em Marrocos.
Além disso, investigações sobre a África Antiga dão-nos notícias de estudos avançados, incluindo em astronomia e navegação, dos povos que habitavam as margens do Índico, a Núbia, o Zimbabwe, o Uganda e o Quénia, coincidindo com grande movimentação de comércio entre os povos árabes, o norte de África e o Oriente e as regiões africanas que circundam os grandes lagos na zona do Índico. Contudo, as notícias da historiografia actual em voga informam-nos que as Universidades mais antigas são todas elas de origem europeia, tendo Bolonha como a mais antiga de todas. E uma das muitas razões para defender este ponto de vista, a principal, é de que as Universidades Europeias concederam graus académicos desde o início, que é uma das prerrogativas das Universidades, o que não se pode verificar relativamente àquelas outras atrás referidas. Sendo assim, como entender o avanço da ciência em todo o mundo se não no âmbito de estudos superiores, quer na Índia, na China, no mundo dos Incas e dos Astecas nas Américas?
A dominação dos centros do saber pelos agentes da globalização foi uma causa de retrocesso no desenvolvimento da investigação e da pesquisa científica das regiões dominadas. O poder militar não significa necessariamente também a posse de conhecimentos mais avançados da ciência e da filosofia. Por isso, a África Colonial, ao conceber as suas primeiras instituições de estudos superiores de natureza universitária, as mesmas apresentavam-se como instrumentos úteis, cuja função social visava fundamentalmente a produção de quadros que organizassem os estados colonizados como réplicas da mente, do sentimento e do olhar dos estados colonizadores.
A Universidade de Maquerere, no Uganda; a Universidade Lumubanche, no Congo; a Universidade Cocodie, na Costa do Marfim; a Universidade de Dakar, no Senegal, foram efectivamente das Universidades mais prestigiadas de África no período colonial e por elas passaram muitos dos intelectuais e líderes africanos, mas, surpreendentemente, a génese do Nacionalismo em África não surge em primeiro lugar a partir dessas Universidades, mas sim daqueles estudantes negros que foram estudar a Paris e Londres. Surpreendentemente também, estas mesmas Universidades perderam o seu fulgor após a independência dos respectivos países. Este pressuposto impõe-nos uma reflexão sobre a função das Universidades em África. Tenho para mim que a questão da qualidade é efectivamente mais um mito do que realidade, porque a realidade deve ser contextualizada e as nossas Universidades em África estão inseridas num contexto que exige delas uma dinâmica para responder a desafios que, se adequadamente enfrentados, concederiam às próprias Universidades o papel de vanguarda na luta pelo desenvolvimento dos nossos estados.
Tomemos, como exemplo, a recente crise financeira, económica e consequentemente social que surgiu no Ocidente, em primeiro lugar, nos Estados Unidos da América e que se estendeu para a Europa. A par de muitos políticos africanos que afirmaram placidamente que os seus países não seriam afectados por essa crise, as nossas Universidades demonstraram que não estavam preparadas para tirar conhecimento sobre esta mesma realidade. Alguns dos nossos docentes de Economia continuaram tranquilamente a transmitir elementos sobre economia e gestão, debitando as teorias daqueles que, no fundo, foram os responsáveis pelo surgimento da crise. Estes docentes não mostraram qualquer atenção para com o fenómeno e mecanicamente continuaram as suas tarefas rotineiras, como se nada tivesse acontecido ou estivesse a acontecer.
As nossas Universidades passam muitas vezes ao lado dos diversos temas em debate, nomeadamente as energias renováveis, o problema do clima, não produzindo qualquer mais valia que beneficie as nossas sociedades. No entanto, é a África o depositário das reservas mais significativas do mundo no que toca à energia, à floresta e à terra arável para a produção de alimentos.
Do meu ponto de vista, é como se o sistema de estudos superiores herdados do período colonial e que deveria ter sido transferido para o benefício da sociedade pós-colonial estivesse ainda a sentir efeitos da anestesia inculcada pelos colonizadores.
Nesta perspectiva, é como se, de uma forma geral, as nossas Universidades fossem um corpo estranho no contexto das próprias sociedades em que se inserem. Deste modo, de que maneira a Universidade Africana está em condições de poder encarar a questão da cooperação universitária?
Normalmente, quando se fala de cooperação universitária, quer-se dizer transferência de informação científica, transferência de informação tecnológica, circulação de estudantes, circulação de docentes, troca de bibliografia e realização de actividades de investigação científica conjunta, bem como outras actividades de extensão universitária e actividades extracurriculares.
Os nossos estados, de tão empobrecidos que se encontram, transmitem-nos esta postura de permanentes pedintes quando se relacionam com o mundo da cooperação internacional. Os potenciais parceiros são tidos como doadores, o que nos põe numa situação de receptores passivos, apesar de sermos nós a fornecer os factores do seu enriquecimento.
Perante esta postura e o discurso político subsequente, de uma forma geral todos os sectores da sociedade acabam por assumir uma atitude de anão perante os mecanismos de cooperação. Quer isto dizer que para além de não ter consciência real dentro da sociedade e do papel que a Universidade deve desempenhar, procurando exercer o seu munus através da derrogação do contacto produzido por outrem e mecanicamente assumido, a Universidade perdeu igualmente energia para poder dar algo de si no processo de troca, no contexto da cooperação.
Esta situação é das mais preocupantes quando analisamos a realidade das Universidades no contexto africano. Existe a Associação das Universidades Africanas com sede em Acra, no Gana. Pessoalmente integrei e participei como membro desta associação por mais de 8 anos, até me dar conta de que nada estava a acontecer e desisti. Os encontros regulares de reitores, cientistas, académicos, técnicos e administrativos que vão regularmente acontecendo no âmbito desta associação, sempre me pareceram como sendo uma oportunidade para se manter uma feira de vaidades e onde eram avivadas as rivalidades diversas, muitas delas de natureza regional e até quase clubista, tomadas de empréstimo sobre rivalidades alheias, cuja conflitualidade não está ainda resolvida. É por isso que as grandes conferências não são alojadas por esta Associação, mas sim, ou pelas agências da ONU da especialidade ou pelos parceiros de cooperação. Não existe em África uma voz de comando que polarize a discussão de questões de interesse académico que diga respeito aos Africanos.
O meu pessimismo leva-me a acreditar que as nossas instituições não estão ainda preparadas para criar as condições para uma efectiva cooperação multilateral, que considero mais eficaz porque redistribui as sinergias, potenciando-se mutuamente. Por outro lado, a ausência de uma voz que canalize os interesses das Universidades Africanas no mundo coloca-nos numa posição de desvantagem quando partimos para a modalidade de cooperação bilateral, sobretudo com as instituições mais poderosas do Norte.
Deste modo, o meu apelo, o meu repto, o meu desejo que aqui deixo é que a prioridade no capítulo da cooperação deve ser dada à cooperação entre as Universidades Africanas, sobretudo na modalidade multilateral. Nós devemos poder trocar informações, transferir informação científica, fazer circular os nossos estudantes e docentes, reconhecer mutuamente os graus académicos e sobretudo fazer sentir o nosso peso social perante o poder dos estados, devemos lutar em conjunto para aumentar o nosso peso específico no contexto global, devemos fazer sentir os nossos governantes que o ensino superior é a chave, não só para o desenvolvimento da sociedade, mas também para a aquisição de prestígio na produção de opiniões nos vários fora internacionais. A nossa cooperação com o Norte deve sobretudo pautar-se pela prudência de que numa relação desigual, a troca é também desigual e quase nunca o mais forte dá o maior quinhão ao mais fraco. A nossa postura dever ser, por isso, de atenção permanente na busca daquilo que é mais correcto e nos serve no contexto em que nos encontramos, para não cairmos na rotina de muitas instituições em África, que recebem os produtos enlatados e os consomem sem ler os prospectos de instruções. A Universidade tem obrigação de ser mais atenta, não só para si própria, mas para o resto da sociedade, porque é nela que estão alojados os estudos superiores.
Golando o poeta digo “Lanterna que vai à frente alumia duas vezes” isto é, alumia para a frente e para trás. Este é que deveria ser o papel da universidade no mundo e sobretudo em África, isto é, alumiar duas vezes.
Lourenço do Rosário - docente universitário e Reitor da Universidade A politécnica.