Saturday, May 29, 2010

Os desmaios da razão (4): “Desmaios”

Os textos que vou passar a publicar nos próximos dias são da autoria do mais criativo e exímio sociólogo que Moçambique alguma vez teve, Elísio Macamo. Os textos estão a ser publicados pelo Jornal Notícias, mas decidi reproduzí-los aqui. Espero que se deliciem-se com as reflexões desta mente brilhante. Pensar é díficil, mas está ao alcance de todos aqueles que com integridade intelectual se entregam a esse exercício. Este exerício, básico, feito pelo Elísio Macamo, nesta série de textos, é, de longe, muito mais instrutivo do que as referências - megalomaniacas, narcisistas e de vaidade – pseudo-teóricas que alguns ciêntistas sociais da nossa praça fazem sobre os ditos “Desmáios de Quisse Mavota”. Publico-os aqui por uma razão didática. Eles representam um excelente exemplo de como se desenvolve o pensamento e senso crítico. São textos que falam por sí e do fénomeno em causa e não de quem os escreveu. Bom proveito.

ATÉ aqui abordei aspectos algo externos ao fenómeno em questão. Lancei impropérios contra várias tendências nocivas, nomeadamente a (i) tendência de reduzir a nossa cultura ao que é bizarro, (ii) a tendência de generalizar com o intuito de apresentar o povo moçambicano como sendo composto por gente parva e, finalmente, (iii) a tendência de tirar conclusões sem nenhuma informação. Escusado será dizer que esses impropérios são um convite ao bom senso na abordagem das coisas da nossa vida. Não é necessária nenhuma formação em ciências sociais para observar regras elementares na abordagem de fenómenos sociais. São regras simples ao alcance de qualquer um de nós. Então, neste texto vou tecer algumas considerações sobre o fenómeno em si porque, afinal, ele é que nos interessa.

O leitor que tem acompanhado o caso dos desmaios vai ter notado, de certeza, algumas observações feitas pela médica psiquiatra Lídia Goveia. Ela integra a equipa oficial encarregue de investigar o assunto. Se não notou não faz mal, é para isso que estou aqui. Ela disse que aqueles desmaios não foram desmaios. Já viu? Não foram desmaios. E porquê? Simples: porque um desmaio, segundo ela, envolve a perca de consciência. E no caso das alunas de Quisse Mavota elas não perderam a consciência, isto é continuaram a ouvir o barulho das pessoas à sua volta, etc. Se estivesse perto dessa senhora dava-lhe dois beijinhos sonoros nas bochecas (se ela deixasse, claro). Esta observação é talvez a única com sentido que se fez ao redor deste caso. As miúdas não desmaiaram. Caíram, ficaram tontas, etc., mas não desmaiaram. Entretanto, toda a inquietação à volta deste assunto – incluindo alguns tratados pseudo-científicos sobre o fenómeno – deram os desmaios por adquirido.

Que serviço é que a médica psiquiatra nos prestou? Ela fez o que cada um de nós deve fazer quando está perante fenómenos sociais. Será que o que aconteceu na realidade corresponde ao que o conceito pressupõe? O que é um desmaio? O que aconteceu naquela escola foi um desmaio? Simples, elementar, mas irritantemente ausente dos comentários especializados. Permito-me uma generalização bruta: há uma tendência vincada entre nós de repetir, sem questionamento, o que a primeira pessoa diz. Esta tendência vai de mãos dadas com uma resistência heróica à definição, condição imprescindível da operacionalização de conceitos, isto é do estabelicimento de regras de correspondência entre conceitos e realidade. Antes de a gente propalar aos quatro ventos o que a “população” pensa sobre o assunto, a gente tem de estabelecer os factos. E os factos aqui não são simplesmente “desmaios”, mas sim se o que aconteceu na escola se enquadra na vasta gama de coisas que podemos chamar de “desmaios”. O cientista social interessar-se-ia, neste caso particular, por saber onde, quando, em que circunstâncias e com que sintomas e manifestações as raparigas procuraram a comunhão com o chão.

Pode ser que, no fundo, o apuramento destas coisas todas não faça muita diferença na conclusão geral de que houve desmaios na escola. Mas a ideia não é essa. A ideia é de nos colocarmos em posição de apreciarmos a diferença e variação no próprio fenómeno. E aqui volto à carga contra algumas tendências nocivas da reflexão analítica entre nós: preocupamo-nos muito pouco com a morfologia das coisas. O crime violento é simplesmente crime violento. Não nos preocupamos em discriminar para conhecermos a percentagem do crime violento que é entre bandidos, entre familiares, entre minorias étnicas, etc.; crime violento que é homicídio voluntário e involuntário, e por aí fora. Gostamos das grandes categorias que suscitam, na opinião pública, o sentimento dum problema bem maior do que é na realidade. Falamos simplesmente de “linchamentos” e não nos preocupamos em discriminar: tipos de linchamento; circunstâncias; contextos; motivações, etc. Contentamo-nos em dizer simplesmente que houve mais um linchamento, o que nos habilita a proclamar a gravidade do assunto. Falamos de acidentes de viação, e idem mesma coisa como dizem alguns machangana. É verdade que já discriminamos um pouco em relação à condução em estado de embriaguez, mau estado de estradas, etc. Contudo, precisamos de discriminar mais: idade dos condutores; hora da ocorrência, experiência de condução, filiação partidária (por que não?), etc.

Só o interesse pela morfologia da coisa é que nos vai colocar em posição de percebermos fenómenos sociais sem esta apetência nociva pela folclorização e conclusões super rápidas.


3 comments:

  1. This comment has been removed by a blog administrator.

    ReplyDelete