Os textos que vou passar a publicar nos próximos dias são da autoria do mais criativo e exímio sociólogo que Moçambique alguma vez teve, Elísio Macamo. Os textos estão a ser publicados pelo Jornal Notícias, mas decidi reproduzí-los aqui. Espero que se deliciem-se com as reflexões desta mente brilhante. Pensar é díficil, mas está ao alcance de todos aqueles que com integridade intelectual se entregam a esse exercício. Este exerício, básico, feito pelo Elísio Macamo, nesta série de textos, é, de longe, muito mais instrutivo do que as referências - megalomaniacas, narcisistas e de vaidade – pseudo-teóricas que alguns ciêntistas sociais da nossa praça fazem sobre os ditos “Desmáios de Quisse Mavota”. Publico-os aqui por uma razão didática. Eles representam um excelente exemplo de como se desenvolve o pensamento e senso crítico. São textos que falam por sí e do fénomeno em causa e não de quem os escreveu. Bom proveito.
Na escola Quisse Mavota, leio curioso, há desmaios aparentemente inexplicáveis de alunos e alunas. Principalmente de alunas. Antes mesmo de os serviços de saúde mandarem uma brigada para o local para apurar as causas do fenómeno, alguns jornalistas e alguns cientistas sociais já tinham começado a conjecturar. Embora se “distanciassem” da opinião da população local – que, segundo os jornalistas, imputa o fenómeno a uma zanga dos espíritos locais que não foram consultados quando se construíu a escola – as suas especulações, por serem demasiado rápidas e insensatas, têm tido o condão de mistificar a coisa, confundir a opinião pública e fazer má publicidade da nossa cultura. A apetência que alguns jornalistas têm de enveredar pelo lado irracional na abordagem de fenómenos sociais que ultrapassam as suas faculdades analíticas é preocupante. Uma manifestação nociva disto é a consulta dos ditos “médicos tradicionais”, pessoas que pelas suas declarações estão evidentemente à leste das coisas. Por outro lado, e a completar o quadro charlatão, a forma ávida como alguns cientistas sociais pegam em fenómenos desta natureza para legitimarem a sua actividade é também alarmante.
O aspecto mais problemático deste assunto é a tendência natural com que um bom número de gente decente e sensata está disposta a dar o benefício da dúvida a crenças bizarras entre nós. Dou uma parte da culpa a alguns jornalistas de formação duvidosa que, dentre outras coisas, dão demasiado tempo de antena a charlatães como os chamados “médicos tradicionais”. Dou outra parte da culpa a alguns cientistas sociais que levam ao extremo a importância de valorizar o ponto de vista das pessoas sobre as quais eles fazem as suas investigações até ao ponto de deixar pairar no ar a ideia de que possa haver algum toque de verdade nessas crenças. Esta atitude dos cientistas sociais é exarcebada por uma tendência cada vez mais vincada nos últimos 15 anos – sobretudo na sequência da guerra da Renamo e da tese fantástica sobre as suas “causas” culturais – de procurar explicar tudo o que é do pelouro social no nosso país com recurso ao que se pensa ser a nossa cultura tradicional. Esta tendência, por sua vez, ganhou maior ímpeto ainda com uma aparente perda de razão passageira do Ministério da Administração Estatal e que levou, nos anos noventa, à reabilitação da chamada autoridade tradicional com base nas mais fantásticas razões que a antropologia é capaz de produzir.
A maior culpa, porém, vai para uma aparente incapacidade generalizada de definir a nossa cultura sem recurso à técnica bastante nociva de a reduzir ao que não faz sentido, é irracional e obscurantista. Numa altura em que muitos de nós temos o privilégio de apreender o mundo através da ciência, temos mais ou menos certeza sobre as suas características e comportamento típico, a crença na influência de defuntos sobre o estado de saúde de rapariguinhas de escola não constitui expressão da nossa cultura tradicional. Constitui, isso sim, expressão de ignorância por parte de algumas pessoas, ignorância essa que precisa de ser abordada como o que é – nomeadamente, ignorância – e não como manifestação cultural. A cultura não está no que as pessoas pensam sobre a influência de espíritos sobre seja o que for; a cultura está nas consequências éticas que gente que pensa – formada ou não – tira da morte e da vida. A nossa cultura forma-se no debate que conduzimos sobre o significado destas coisas e nas razões que cada um de nós tem de aceitar ou não o que a maioria – ou a minoria poderosa – diz sobre o assunto. Ninguém é imune à irracionalidade. Posso fumar e beber, apesar de saber que isso faz mal à saúde. Em momentos difíceis da minha existência posso ficar bastante vulnerável a crenças fantásticas, mas isso tudo não dá permissão a nenhum de nós de articular essas fraquezas com uma suposta cultura tradicional moçambicana. Acreditar em coisas sem sentido não é manifestação de cultura tradicional. É ignorância.
Proponho uma série sobre o fenómeno dos desmaios. O meu propósito não é de explicar o assunto – porque não tenho nenhuma explicação – mas sim de dar alguns subsídios a alguns jornalistas bem como a todo o leitor sensato sobre como abordar este tipo de assuntos. A mistificação de que o assunto está a ser alvo parece revelar a necessidade de clarificar a forma como as ciências sociais abordam este tipo de fenómenos como contribuição à melhoria do debate público. Nos textos que se seguem vou analisar aspectos importantes da abordagem científica social, aspectos esses que são acessíveis a qualquer pessoa sem formação nessa área, mas com bom senso.
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