Sociólogo Elísio Macamo convida-nos à combater a credulidade numa série que está a ser publicada pelo Jornal Notícias, e que será aqui reproduzida na íntegra.
Maputo, Quinta-Feira, 30 de Setembro de 2010:: Notícias
A CREDULIDADE tem várias manifestações (não confundir com “distúrbios”). Uma delas, sobre a qual me debruço neste texto, é de argumentar a partir duma posição de compromisso. Eu explico. Algumas intervenções no debate sobre os distúrbios de 1 de Setembro foram no sentido de dizer que a carestia de vida é tanta que um pobre não tem outra alternativa senão revoltar-se violentamente. A credulidade intervém aqui para nos dizer que sim, essa situação explica tudo; ou que não, isso não explica nada. No primeiro caso queremos acreditar que sim enquanto que no segundo queremos acreditar no contrário. Antes de eu analisar os problemas inerentes a esta atitude vou explicar a natureza do argumento envolvido um bocadinho mais. A essência vai no sentido de dizer que a posição que uma determinada pessoa ocupa na sociedade (podia também ser a filiação religiosa, política, etc.) obriga-a a agir duma única maneira se não quiser ser incoerente. Um pobre, porque pobre, só pode reagir à carestia revoltando-se.
O argumento contém três elementos. O primeiro é, por assim dizer, uma premissa que contém provas da existência de um compromisso. Por exemplo, os “manifestantes” são pobres (afinal estavam a reclamar a subida de preços, vivem em bairros periféricos, dependem de “chapa”, etc.). Podíamos representar formalmente esta premissa com a seguinte frase: f (fulano de tal) tem compromisso com posição x de acordo com certas provas ao nosso dispor (as condições sociais em que vive). O segundo elemento continua a ser uma premissa, mas desta feita o que ela faz é articular o posicionamento com uma outra coisa. Por exemplo: um pobre revolta-se quando a carestia da vida aumenta. A forma seria: normalmente, a posição x implica também posição y. Ou seja, um pobre (posição x) revolta-se quando a carestia de vida aumenta (posição y). Destas duas premissas resulta a conclusão deste argumento com base no compromisso, nomeadamente que f (fulano de tal) por ser x tem que fazer também y. Em moçambiquês: um verdadeiro pobre deve revoltar-se quando a carestia da vida aumenta! Esta conclusão é violenta porque impõe limites ao que podemos dizer, fazer ou pensar em virtude do lugar que ocupamos na sociedade. Corremos o sério risco de sermos acusados de incoerência se fizermos ou dissermos coisas que não encaixam na expectativa criada por este argumento. Se um indivíduo, apesar de ser pobre, dissesse que não é com manifestação que o problema se resolve, achamos que podemos com legitimidade levantar sérias interrogações em relação à genuidade da sua condição. Dizemos, indignados, que um indivíduo que diz isso não pode ser pobre! E este tem sido o problema nas nossas discussões na esfera pública. Ou obrigamos as pessoas a aceitarem as implicações práticas de ocuparem certos lugares na sociedade ou então a reconhecerem que estão a ser incoerentes.
Há saídas para este dilema. A primeira saída é simples. Que provas são essas que demonstram que f tem compromisso com posição x? No caso do pobre a coisa é simples. A situação está difícil no país e aquele que é pobre não pode esconder a sua condição. Nem tem necessidade de o fazer. Mas o conceito de pobre é vasto demais para poder comprometer todo o indivíduo que possa assim ser descrito. Há pobres muçulmanos, presbiterianos, católicos, ateus, operários, empregados domésticos, mulheres, jovens, do sul, da Frelimo, que vivem neste e não naquele bairro, etc. Cada uma destas pertenças ou identidades é um quadro de referência normativa que age sobre cada um desses indivíduos e impõe limites ao que ele faz ou pensa que devia fazer. Esta complexidade da noção de pobre não permite a ninguém deduzir o seu comportamento simplesmente a partir da constatação de que alguém é pobre. Há pobres que de certeza acreditam no respeito de propriedade alheia e na ordem. Não são vítimas de falsa consciência. São assim e ponto final. O uso indiscriminado da categoria de pobre para explicar porque algumas pessoas reagiram de forma violenta à carestia da vida (partindo do princípio de que esse foi o caso) parece-me assim problemático.
A segunda saída é central. Haverá excepções à regra segundo a qual a posição x implica posição y? Por exemplo, se um determinado pobre achar que certos pobres – com os quais ele devia solidarizar-se por ser também pobre – comportam-se duma maneira que viola os seus valores e, por causa disso mesmo, achar que lhes devia recusar a sua solidariedade, ele poderia dizer que ao fazer isso não estaria a ser incoerente consigo próprio porque o seu entendimento da conduta moral dum pobre obriga-o a condenar certas posturas. É verdade que algumas pessoas podem insistir com um princípio geral que diz que um pobre, independentemente das circunstâncias e da conduta de outros pobres, deve ser solidário com outros pobres. Aí, contudo, já estamos a entrar numa área que ultrapassa os limites da atitude analítica. Já não se trataria de reflexão crítica, mas sim de obediência. E na verdade, uma grande ameaça que páira sobre as nossas sociedades é este compromisso cego com certos princípios normativos gerais. É esta ideia nociva de que aquilo que consideramos correcto é correcto para toda a gente e em todas as circunstâncias.
Maputo, Quinta-Feira, 30 de Setembro de 2010:: Notícias
A CREDULIDADE tem várias manifestações (não confundir com “distúrbios”). Uma delas, sobre a qual me debruço neste texto, é de argumentar a partir duma posição de compromisso. Eu explico. Algumas intervenções no debate sobre os distúrbios de 1 de Setembro foram no sentido de dizer que a carestia de vida é tanta que um pobre não tem outra alternativa senão revoltar-se violentamente. A credulidade intervém aqui para nos dizer que sim, essa situação explica tudo; ou que não, isso não explica nada. No primeiro caso queremos acreditar que sim enquanto que no segundo queremos acreditar no contrário. Antes de eu analisar os problemas inerentes a esta atitude vou explicar a natureza do argumento envolvido um bocadinho mais. A essência vai no sentido de dizer que a posição que uma determinada pessoa ocupa na sociedade (podia também ser a filiação religiosa, política, etc.) obriga-a a agir duma única maneira se não quiser ser incoerente. Um pobre, porque pobre, só pode reagir à carestia revoltando-se.
O argumento contém três elementos. O primeiro é, por assim dizer, uma premissa que contém provas da existência de um compromisso. Por exemplo, os “manifestantes” são pobres (afinal estavam a reclamar a subida de preços, vivem em bairros periféricos, dependem de “chapa”, etc.). Podíamos representar formalmente esta premissa com a seguinte frase: f (fulano de tal) tem compromisso com posição x de acordo com certas provas ao nosso dispor (as condições sociais em que vive). O segundo elemento continua a ser uma premissa, mas desta feita o que ela faz é articular o posicionamento com uma outra coisa. Por exemplo: um pobre revolta-se quando a carestia da vida aumenta. A forma seria: normalmente, a posição x implica também posição y. Ou seja, um pobre (posição x) revolta-se quando a carestia de vida aumenta (posição y). Destas duas premissas resulta a conclusão deste argumento com base no compromisso, nomeadamente que f (fulano de tal) por ser x tem que fazer também y. Em moçambiquês: um verdadeiro pobre deve revoltar-se quando a carestia da vida aumenta! Esta conclusão é violenta porque impõe limites ao que podemos dizer, fazer ou pensar em virtude do lugar que ocupamos na sociedade. Corremos o sério risco de sermos acusados de incoerência se fizermos ou dissermos coisas que não encaixam na expectativa criada por este argumento. Se um indivíduo, apesar de ser pobre, dissesse que não é com manifestação que o problema se resolve, achamos que podemos com legitimidade levantar sérias interrogações em relação à genuidade da sua condição. Dizemos, indignados, que um indivíduo que diz isso não pode ser pobre! E este tem sido o problema nas nossas discussões na esfera pública. Ou obrigamos as pessoas a aceitarem as implicações práticas de ocuparem certos lugares na sociedade ou então a reconhecerem que estão a ser incoerentes.
Há saídas para este dilema. A primeira saída é simples. Que provas são essas que demonstram que f tem compromisso com posição x? No caso do pobre a coisa é simples. A situação está difícil no país e aquele que é pobre não pode esconder a sua condição. Nem tem necessidade de o fazer. Mas o conceito de pobre é vasto demais para poder comprometer todo o indivíduo que possa assim ser descrito. Há pobres muçulmanos, presbiterianos, católicos, ateus, operários, empregados domésticos, mulheres, jovens, do sul, da Frelimo, que vivem neste e não naquele bairro, etc. Cada uma destas pertenças ou identidades é um quadro de referência normativa que age sobre cada um desses indivíduos e impõe limites ao que ele faz ou pensa que devia fazer. Esta complexidade da noção de pobre não permite a ninguém deduzir o seu comportamento simplesmente a partir da constatação de que alguém é pobre. Há pobres que de certeza acreditam no respeito de propriedade alheia e na ordem. Não são vítimas de falsa consciência. São assim e ponto final. O uso indiscriminado da categoria de pobre para explicar porque algumas pessoas reagiram de forma violenta à carestia da vida (partindo do princípio de que esse foi o caso) parece-me assim problemático.
A segunda saída é central. Haverá excepções à regra segundo a qual a posição x implica posição y? Por exemplo, se um determinado pobre achar que certos pobres – com os quais ele devia solidarizar-se por ser também pobre – comportam-se duma maneira que viola os seus valores e, por causa disso mesmo, achar que lhes devia recusar a sua solidariedade, ele poderia dizer que ao fazer isso não estaria a ser incoerente consigo próprio porque o seu entendimento da conduta moral dum pobre obriga-o a condenar certas posturas. É verdade que algumas pessoas podem insistir com um princípio geral que diz que um pobre, independentemente das circunstâncias e da conduta de outros pobres, deve ser solidário com outros pobres. Aí, contudo, já estamos a entrar numa área que ultrapassa os limites da atitude analítica. Já não se trataria de reflexão crítica, mas sim de obediência. E na verdade, uma grande ameaça que páira sobre as nossas sociedades é este compromisso cego com certos princípios normativos gerais. É esta ideia nociva de que aquilo que consideramos correcto é correcto para toda a gente e em todas as circunstâncias.
Elisio Macamo - Sociólogo, colaborador
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