Thursday, October 7, 2010

Vamos combater a credulidade: Dos das correlações (8b)

Sociólogo Elísio Macamo convida-nos à combater a credulidade numa série que está a ser publicada pelo Jornal Notícias, e que será aqui reproduzida na íntegra.

Maputo, Quinta-Feira, 7 de Outubro de 2010:: Notícias

COMO ler criticamente um estudo tão bem feito como este? Ainda há espaço para distância crítica? A correlação entre apatia do Estado e crença no mito da cólera é, nos dados apresentados pelo estudo, tão elevada que não pode haver outra maneira de interpretar os resultados. Existem basicamente três estratégias para interpelar criticamente este tipo de argumento. Todas elas consistem em perguntas. A primeira pergunta é a seguinte: será que existe mesmo uma correlação entre A e B? A segunda não menos importante é a seguinte: haverá alguma razão para supor que a correlação não seja simplesmente pura coincidência? Finalmente, a terceira pergunta é: é concebível que haja um terceiro factor (digamos C) que constitui a causa de A e B? Esta última pergunta não é inocente. Na verdade, há muitas correlações que fazemos no quotidiano e que se explicam, muitas vezes facilmente, com recurso a uma terceira variável. Por exemplo, podíamos associar a quantidade de estragos num incêndio ao número de bombeiros que o debelaram e concluirmos que os bombeiros são a causa do estrago. Contudo, pode ser que o tamanho do incêndio tivesse exigido mais bombeiros pelo que o próprio tamanho é que seria responsável pelos estragos. Por conseguinte, a nossa distância crítica tem que nos conduzir a eliminar outros factores que possam estar por detrás da correlação imputada. Pensar criticamente significaria, neste caso, justamente eliminar esses factores.
Colocadas as coisas desta maneira, podemos começar a ver alguns problemas com o estudo. Em relação à primeira pergunta (será que existe mesmo uma correlação entre A e B?) podemos, socorrendo-nos dos dados facultados pelo estudo, dizer que de facto existe uma correlação entre a apatia do Estado e a crença popular. Os vários depoimentos são prova disso. Abro aqui, porém, um parêntesis para dizer que seria interessante perguntar também se em todo o lado onde se manifesta este tipo de crença o Estado é visto como sendo apático ou, dito de outra maneira, porque sendo o nosso Estado geralmente apático (suponhamos) não se verificam estas crenças noutros pontos do país com a intensidade que elas têm em Nampula? Estas perguntas são particularmente pertinentes na consideração da terceira pergunta mais adiante.
A resposta à nossa segunda pergunta (haverá alguma razão para supor que a correlação não seja simplesmente pura coincidência?) é menos linear. Há um investimento normativo muito forte por parte dos investigadores para estabelecer a responsabilidade do Estado. A (ir)responsabilidade do Estado é a resposta padrão dos estudos feitos pela Oficina de Sociologia. Porque há linchamentos? Porque há privatização da justiça face à inoperância do Estado. Porque as pessoas frequentam as igrejas pentecostais? Porque estão a reagir à ausência do Estado cuja responsabilidade é escondida pelo discurso da culpa pessoal das preces feitas nessas igrejas. O que quero dizer com isto é que o estudo foi feito com a intenção de “desnudar o mito da cólera” através da obtenção de “... conhecimento das opiniões dos cidadãos sobre o Estado no concernente à prestação de serviços essenciais como água, saúde e educação”. Conhecidas que são as “insuficiências” do nosso Estado, era concebível que o discurso popular fosse diferente do apurado? Não me parece. Em certa medida, portanto, o estudo confirmou a sua própria profecia.
Contudo, há aqui e ali elementos interessantes que vão sobressaindo dos depoimentos populares. Por exemplo, fala-se de conflitos entre duas interpretações do Islão; fala-se de conflitos entre os jovens e os mais velhos; fala-se de conflitos entre mulheres e homens, embora (tendo em conta o facto de se tratar de sociedades matrilineares) me pareça haver exagero na apresentação da novidade do protagonismo feminino. Estes conflitos são secundarizados no estudo e não merecem a atenção prolongada dos investigadores. O que me parece uma pena. Na verdade, teria sido interessante cruzar estes conflitos com o perfil social daqueles que se envolveram no ataque aos agentes da autoridade e procurar saber se aí também há correlações a fazer. É verdade que do ponto de vista da pesquisa seria difícil encontrar pessoas que tivessem a coragem de dizer que cometeram delitos, mas mesmo assim a partir dos depoimentos teria sido possível estabelecer correlações entre estes outros conflitos e as crenças. Os autores não fizeram nada disso e esta omissão parece-me constituir o calcanhar de Aquiles de um estudo que, de outro modo, é um excelente exemplo da pesquisa social empírica. A responsabilidade, porém, não está nos autores, mas naqueles que vão ler o estudo sem procurar interpelar as suas conclusões para além do que foi dito.
À terceira pergunta (é concebível que haja um terceiro factor (digamos C) que constitui a causa de A e B?), para voltarmos à vaca fria, podemos responder afirmativamente. Podíamos dizer que a crença em si é manifestação de ignorância ou de estruturas tradicionais de pensamento, mas que isso em si não é fundamental. O que é fundamental é explicar a reacção violenta na sequência da crença. Aí podíamos dizer que quer a reacção violenta, quer a apatia do Estado são fenómenos que são explicados pelo desmoronamento das estruturas de autoridade naquela região de modo que a nossa atenção não se deve cingir apenas às críticas ao Estado, mas às transformações que ocorrem naqueles meios. E, de facto, os vários outros conflitos mencionados, mas não aprofundados, revelam que a questão da autoridade é fulcral. É interessante notar que as pessoas, no fundo, sabem que o cloro não causa a cólera. Desconfiam das intenções dos representantes do Estado, mas esta desconfiança não explica a sua reacção violenta. No artigo a seguir fecho esta mini-série de três artigos.
E. Macamo - Sociólogo, nosso colaborador

2 comments:

oakleyses said...

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