Friday, November 26, 2010

O Ensino Superior e cooperação internacional - A Universidade Africana e o mundo (Conclusão)

Do Professor Lourenço do Rosário, Reitor da Universidade A-Politécnica, surge uma reflexão interessante sobre o Ensino Superior e a cooperação internacional. Vamos ler e possivelmente comentar e debater este assunto aqui.


SOBRE a questão dos estudos superiores em África e sua constituição em espaço universitário, ela ainda não se tornou um debate propriamente dito.

Mas importa levantar, pois a mesma tem a ver com o problema recorrente de se considerar que as Universidades Africanas actualmente não possuem a qualidade que se pretende, porque as estruturas socioeconómicas dos estados em que as mesmas se inserem são muito frágeis e atrasadas.

O conceito qualidade é um conceito abstracto e o mesmo deve poder ser caracterizado com contornos que permitam aferir comparativamente, e não como uma medida absoluta. Eu não posso pura e simplesmente afirmar que a Universidade tal ou tal tem qualidade, porque esta ou aquela se encontra inserida neste ou naquele país. De que ponto de partida eu estabeleço a minha aferição? Esta questão de qualidade tem sido debatida em outras áreas. Alguns colegas das universidades ocidentais na área das Letras, por exemplo, olham com muita desconfiança a produção literária dos africanos, considerando a literatura africana como sendo uma literatura sem arte e apresentam vários argumentos, entre os quais apontam a sua colagem demasiado evidente às questões históricas, sociológicas e políticas, como sendo matéria metafórica a preencher os seus conteúdos, longe do aprimoramento de linguagem, longe do enfoque filosófico e longe da preocupação com a estética. Em última análise, que não é comparável um romance africano a um romance francês, quando se fala da qualidade literária. Perante uma recorrência desta natureza, no mínimo o que devemos fazer é não entrar no debate, porque me parece que o raciocínio está inquinado à partida por presunção de superioridade cultural. Se trouxermos esta questão para a discussão sobre a qualidade das Universidades, colocando na balança de comparação as Universidades Africanas e as Universidades Ocidentais, estaremos perante um debate inútil. Relembro aqui aquilo que atrás disse sobre os estágios dos estudos superiores em função do estágio de cada grupo social. Bem sei que para trás as sociedades eram mais fechadas e o seu processo de desenvolvimento era mais endógeno do que exógeno, bem sei igualmente que as teorias da globalização tendem a pressionar a adopção das posturas em que a periferia deve adoptar os modelos do centro.

O MIT americano e a Universidade de Singapura estabeleceram um acordo de cooperação ao mais alto nível na produção de programas de pós-graduação. É um dado adquirido e todos aceitam o pressuposto de que os quadros produzidos nesta aliança são do maior valor mundial em termos de qualidade. Os factores que assim o determinam podem não ser eminentemente universitários ou de apuro científico ou técnico no que toca a competências, mas também aqueles que têm a ver com os altos valores cobrados, que podem ascender a quase meio milhão de dólares, e que, por isso, só as elites económicas e as empresas de grande podem aspirar ao ingresso nesses programas, reproduzindo modelos de aferição de auto-valorização. Os quadros produzidos pela Associação de MIT americana e da Universidade de Singapura não servem para a realidade africana. Assim, é natural que a Universidade de Singapura tenha modelos de formação que entrem em pé de igualdade com a MIT para produzir programas conjuntos de pós-graduação de ponta oferecidos a todo mundo. Contudo, já não se torna normal que uma Universidade Africana esteja em pé de igualdade com estas mesmas universidades, o que não quer dizer que a qualidade ou o modelo de qualidade seja necessariamente aquele que é oferecido pela Associação da Universidade de Singapura e a MIT e que nós, os Africanos, se não atingirmos esse patamar, estamos sem qualidade. Por isso, a questão da qualidade é sincrónica e contextual, ela deve ser vista em cada momento e em cada espaço, e naquele momento. Só esta postura nos vai permitir que, passo a passo, possamos de uma forma racional e com conhecimento de causa aspirar a patamares cada vez mais avançados com o avanço do conhecimento por nós próprios dominado.

Muitos países africanos, com vários recursos naturais, têm sido acusados de assinar contratos desastrosos para exploração desses mesmos recursos, porque aqueles que têm a responsabilidade de negociar os dossiês sobre o acesso a esses mesmos recursos, ou são corruptos ou, se não são corruptos, ignoram os mecanismos mais adequados para negociações vantajosas para a sua própria sociedade, por falta de preparação sobre os processos negociais. E, consequentemente, consideram correctas as propostas que a contraparte apresenta, que exercendo ao mesmo tempo o papel de jogadores e árbitros colocam na mesa. Isto é verdade, mas esta situação não resulta da falta de qualidade das nossas Universidades que devem ter formado previamente tais negociadores, mas sim do processo desfasado entre o acesso ao conhecimento do domínio da natureza e dos recursos naturais dos nossos países e aquilo que se passa nos países que demandam as nossas matérias-primas.

A história tem-nos demonstrado que sempre que se pretende queimar etapas, os efeitos negativos são maiores que os positivos e que as forças produtivas se devem desenvolver conforme a conjuntura. Quer isto dizer que se as nossas Universidades não estão ainda apetrechadas de modo a produzir conhecimento sobre a nossa realidade e riqueza natural e como consequência não estão preparadas para formar cidadãos que possam dominar as linguagens negociais ou execução de actividades nestas áreas, isso não significa que as Universidades não tenham qualidade, não têm qualidade sim para este dossiê concreto, porque o Estado, ele próprio, não se apetrechou para o efeito, ou não buscou soluções alternativas para se preparar para uma situação para a qual não estava prevenido.

No período pré-colonial, em África, houve actividades relacionadas com estudos superiores prósperos e reconhecidos pelo mundo então conhecido. É disso exemplo a Universidade de Tumbucto, no Mali, as Universidades do Cairo, em Alexandria, Ahzar, no Egipto e Karaouine, em Marrocos.

Além disso, investigações sobre a África Antiga dão-nos notícias de estudos avançados, incluindo em astronomia e navegação, dos povos que habitavam as margens do Índico, a Núbia, o Zimbabwe, o Uganda e o Quénia, coincidindo com grande movimentação de comércio entre os povos árabes, o norte de África e o Oriente e as regiões africanas que circundam os grandes lagos na zona do Índico. Contudo, as notícias da historiografia actual em voga informam-nos que as Universidades mais antigas são todas elas de origem europeia, tendo Bolonha como a mais antiga de todas. E uma das muitas razões para defender este ponto de vista, a principal, é de que as Universidades Europeias concederam graus académicos desde o início, que é uma das prerrogativas das Universidades, o que não se pode verificar relativamente àquelas outras atrás referidas. Sendo assim, como entender o avanço da ciência em todo o mundo se não no âmbito de estudos superiores, quer na Índia, na China, no mundo dos Incas e dos Astecas nas Américas?

A dominação dos centros do saber pelos agentes da globalização foi uma causa de retrocesso no desenvolvimento da investigação e da pesquisa científica das regiões dominadas. O poder militar não significa necessariamente também a posse de conhecimentos mais avançados da ciência e da filosofia. Por isso, a África Colonial, ao conceber as suas primeiras instituições de estudos superiores de natureza universitária, as mesmas apresentavam-se como instrumentos úteis, cuja função social visava fundamentalmente a produção de quadros que organizassem os estados colonizados como réplicas da mente, do sentimento e do olhar dos estados colonizadores.

A Universidade de Maquerere, no Uganda; a Universidade Lumubanche, no Congo; a Universidade Cocodie, na Costa do Marfim; a Universidade de Dakar, no Senegal, foram efectivamente das Universidades mais prestigiadas de África no período colonial e por elas passaram muitos dos intelectuais e líderes africanos, mas, surpreendentemente, a génese do Nacionalismo em África não surge em primeiro lugar a partir dessas Universidades, mas sim daqueles estudantes negros que foram estudar a Paris e Londres. Surpreendentemente também, estas mesmas Universidades perderam o seu fulgor após a independência dos respectivos países. Este pressuposto impõe-nos uma reflexão sobre a função das Universidades em África. Tenho para mim que a questão da qualidade é efectivamente mais um mito do que realidade, porque a realidade deve ser contextualizada e as nossas Universidades em África estão inseridas num contexto que exige delas uma dinâmica para responder a desafios que, se adequadamente enfrentados, concederiam às próprias Universidades o papel de vanguarda na luta pelo desenvolvimento dos nossos estados.

Tomemos, como exemplo, a recente crise financeira, económica e consequentemente social que surgiu no Ocidente, em primeiro lugar, nos Estados Unidos da América e que se estendeu para a Europa. A par de muitos políticos africanos que afirmaram placidamente que os seus países não seriam afectados por essa crise, as nossas Universidades demonstraram que não estavam preparadas para tirar conhecimento sobre esta mesma realidade. Alguns dos nossos docentes de Economia continuaram tranquilamente a transmitir elementos sobre economia e gestão, debitando as teorias daqueles que, no fundo, foram os responsáveis pelo surgimento da crise. Estes docentes não mostraram qualquer atenção para com o fenómeno e mecanicamente continuaram as suas tarefas rotineiras, como se nada tivesse acontecido ou estivesse a acontecer.
As nossas Universidades passam muitas vezes ao lado dos diversos temas em debate, nomeadamente as energias renováveis, o problema do clima, não produzindo qualquer mais valia que beneficie as nossas sociedades. No entanto, é a África o depositário das reservas mais significativas do mundo no que toca à energia, à floresta e à terra arável para a produção de alimentos.

Do meu ponto de vista, é como se o sistema de estudos superiores herdados do período colonial e que deveria ter sido transferido para o benefício da sociedade pós-colonial estivesse ainda a sentir efeitos da anestesia inculcada pelos colonizadores.

Nesta perspectiva, é como se, de uma forma geral, as nossas Universidades fossem um corpo estranho no contexto das próprias sociedades em que se inserem. Deste modo, de que maneira a Universidade Africana está em condições de poder encarar a questão da cooperação universitária?

Normalmente, quando se fala de cooperação universitária, quer-se dizer transferência de informação científica, transferência de informação tecnológica, circulação de estudantes, circulação de docentes, troca de bibliografia e realização de actividades de investigação científica conjunta, bem como outras actividades de extensão universitária e actividades extracurriculares.
Os nossos estados, de tão empobrecidos que se encontram, transmitem-nos esta postura de permanentes pedintes quando se relacionam com o mundo da cooperação internacional. Os potenciais parceiros são tidos como doadores, o que nos põe numa situação de receptores passivos, apesar de sermos nós a fornecer os factores do seu enriquecimento.

Perante esta postura e o discurso político subsequente, de uma forma geral todos os sectores da sociedade acabam por assumir uma atitude de anão perante os mecanismos de cooperação. Quer isto dizer que para além de não ter consciência real dentro da sociedade e do papel que a Universidade deve desempenhar, procurando exercer o seu munus através da derrogação do contacto produzido por outrem e mecanicamente assumido, a Universidade perdeu igualmente energia para poder dar algo de si no processo de troca, no contexto da cooperação.

Esta situação é das mais preocupantes quando analisamos a realidade das Universidades no contexto africano. Existe a Associação das Universidades Africanas com sede em Acra, no Gana. Pessoalmente integrei e participei como membro desta associação por mais de 8 anos, até me dar conta de que nada estava a acontecer e desisti. Os encontros regulares de reitores, cientistas, académicos, técnicos e administrativos que vão regularmente acontecendo no âmbito desta associação, sempre me pareceram como sendo uma oportunidade para se manter uma feira de vaidades e onde eram avivadas as rivalidades diversas, muitas delas de natureza regional e até quase clubista, tomadas de empréstimo sobre rivalidades alheias, cuja conflitualidade não está ainda resolvida. É por isso que as grandes conferências não são alojadas por esta Associação, mas sim, ou pelas agências da ONU da especialidade ou pelos parceiros de cooperação. Não existe em África uma voz de comando que polarize a discussão de questões de interesse académico que diga respeito aos Africanos.

O meu pessimismo leva-me a acreditar que as nossas instituições não estão ainda preparadas para criar as condições para uma efectiva cooperação multilateral, que considero mais eficaz porque redistribui as sinergias, potenciando-se mutuamente. Por outro lado, a ausência de uma voz que canalize os interesses das Universidades Africanas no mundo coloca-nos numa posição de desvantagem quando partimos para a modalidade de cooperação bilateral, sobretudo com as instituições mais poderosas do Norte.

Deste modo, o meu apelo, o meu repto, o meu desejo que aqui deixo é que a prioridade no capítulo da cooperação deve ser dada à cooperação entre as Universidades Africanas, sobretudo na modalidade multilateral. Nós devemos poder trocar informações, transferir informação científica, fazer circular os nossos estudantes e docentes, reconhecer mutuamente os graus académicos e sobretudo fazer sentir o nosso peso social perante o poder dos estados, devemos lutar em conjunto para aumentar o nosso peso específico no contexto global, devemos fazer sentir os nossos governantes que o ensino superior é a chave, não só para o desenvolvimento da sociedade, mas também para a aquisição de prestígio na produção de opiniões nos vários fora internacionais. A nossa cooperação com o Norte deve sobretudo pautar-se pela prudência de que numa relação desigual, a troca é também desigual e quase nunca o mais forte dá o maior quinhão ao mais fraco. A nossa postura dever ser, por isso, de atenção permanente na busca daquilo que é mais correcto e nos serve no contexto em que nos encontramos, para não cairmos na rotina de muitas instituições em África, que recebem os produtos enlatados e os consomem sem ler os prospectos de instruções. A Universidade tem obrigação de ser mais atenta, não só para si própria, mas para o resto da sociedade, porque é nela que estão alojados os estudos superiores.

Golando o poeta digo “Lanterna que vai à frente alumia duas vezes” isto é, alumia para a frente e para trás. Este é que deveria ser o papel da universidade no mundo e sobretudo em África, isto é, alumiar duas vezes.

Lourenço do Rosário - docente universitário e Reitor da Universidade A politécnica.
Fonte aqui

Thursday, November 25, 2010

O Ensino Superior e cooperação internacional (2)



Do Professor Lourenço do Rosário, Reitor da Universidade A-Politécnica, surge uma reflexão interessante sobre o Ensino Superior e a cooperação internacional. Vamos ler e possivelmente comentar e debater este assunto aqui.

OS processos globalizantes não são um fenómeno que se manifesta apenas na actividade da história da Humanidade. Partindo do princípio que a diversidade dos grupos sociais que se foram constituindo em Estados, quer de uma forma pacífica quer através de um processo bélico, estabelecem fronteiras, pode-se afirmar também que o equilíbrio dessas mesmas fronteiras se concretiza através de uma correlação de forças.

Essa correlação de forças pode resultar da aceitação tácita de que uns são mais fortes do que outros e que através de um sistema intrincado de diplomacia se estabelece o respeito e a estabilidade de cada espaço ou então através de um terror multifacetado, a partir da dominação militar. Assim, aqueles estados mais poderosos têm consequentemente a necessidade de possuir também formas mais avançadas de domínio do saber e muitas vezes procuram impor os seus modelos de organização dos centros de conhecimento aos estados mais fracos e esta imposição pode não ser feita pela força, bastando muitas vezes criar nos outros a percepção de que não há alternativa aos seus modelos.
Os estudos superiores, tal como os caracterizamos nas páginas anteriores, são um processo imanente de cada grupo social e os mesmos respondem ao grau de desenvolvimento em que cada grupo se encontra, preenchendo os requisitos que o comunicado da UNESCO citado actualiza.
Contudo, quando em situação horizontal de relações desiguais se provoca também a percepção da desigualdade de níveis no estágio em que se encontram os estudos superiores dos estados mais fracos face ao estágio desses mesmos estudos nos estados mais fortes, a questão da função social das instituições do Ensino Superior tem os seus factores de discussão pervertidos.
O debate está na ordem do dia: primeiro, os estudos superiores devem ser para as massas ou para a elite? Todos nós sabemos de uma forma empírica, à vista desarmada, que até este momento, os estados não conseguiram que todos os seus cidadãos atingissem ou atinjam os níveis superiores da educação, mas este facto, por si, não determina a elitização do sistema.
Em Moçambique, por exemplo, é dado adquirido que o acesso ao Ensino Superior é direito de todos os cidadãos, no entanto, este desiderato virtual não faz com que todos os cidadãos acedam a esse nível de ensino. Em Moçambique, o número de estudantes do ensino superior representa 0,9 porcento dos estudantes de todo o sistema de educação. As razões não se prendem apenas com a questão de políticas públicas, mas também pelo facto da fragilidade económica e financeira que não permite que o desejo de massificar o ensino superior se concretize, apesar de todos nós termos a consciência de que a opção do Estado Moçambicano é o Ensino Superior para as massas. Ter 80000 estudantes no nível superior, num universo de 20 milhões de cidadãos, pode demonstrar quão distante está o desejo e a concretização do desejo.
Porém, este facto não impede que no seio da sociedade moçambicana surjam opiniões de que se o Estado Moçambicano optar pela massificação do Ensino Superior estará a enterrar a cabeça na areia, tal como as avestruzes fazem perante um perigo eminente, porque efectivamente, ao longo da história da humanidade, sempre se comprovou que a educação superior se concretiza através de um processo de crivo, em que a elitização dos que acedem a esses níveis se torna natural. Desta forma, a função social da Educação Superior, com vista a produzir o conhecimento e formar o cidadão, é simultaneamente uma função que visa o desenvolvimento através da produção do conhecimento, mas visa também a formação do cidadão que melhor sirva aos interesses do seu Estado.
Se considerarmos a consciência que as instituições do Educação Superior têm do seu peso específico no contexto das várias organizações e instituições em cada estado, é natural que a questão da autonomia académica e científica seja uma bandeira para este espaço da educação.
Desde a antiguidade que a relação entre a organização do estado e as instituições do estado e as elites do saber sempre mantiveram uma relação de mútua emulação que vai de interesse e atracção para uma forte rejeição, quando as diversas especialidades de estudos superiores começaram a sentir-se acossadas pelo poder, no sentido de lhes controlar o produto, que era o conhecimento, e controlar o pensamento dos seus membros, bem como dos seus formandos. Foi assim que as mesmas decidiram pouco a pouco a juntar-se e formar corporações a que denominam de UNIVERSIDADE, Universitas Magistrorum et Almnrum, ou seja, “O Universo dos Mestres e dos Discípulos”.
As universidades surgem como uma associação livre a partir das diversas áreas do saber do estudo superior, em que mestres e discípulos, da investigação e pesquisa, professores e alunos da formação, se juntaram para perseguirem objectivos comuns. E o lema era “Servir o Estado e a sociedade sim, mas com liberdade”.
Da mesma forma que o comunicado de 2009, a UNESCO dá um enfoque específico à criação do sentimento da cidadania através de uma crítica construtiva, como sendo o elemento fundamental do Ensino Superior. O princípio de autonomia e liberdade universitária é um património inviolável de dimensão mundial.
Na história do ocidente, sobretudo na cultura judaico cristã, nós verificamos o esforço que as outras corporações e o poder do estado fizeram para controlar as universidades. Hoje, a História fala-nos de que as universidades tiveram a sua origem junto das organizações religiosas, nomeadamente da Igreja, e nós assimilamos esta informação como sendo genuína. Contudo, um olhar mais atento há-de despertar-nos para o facto de haver uma profunda contradição entre a essência das universidades, face aos objectivos que perseguem relativamente à autonomia e liberdade, comparativamente à essência dogmática das religiões, bem como temos verificado na História, diversas tentativas de transformar as universidades em centros de produção de comissários políticos ou também e centro de promoção profissional.
As universidades guardaram dentro de si a memória da sua origem, isto é, corporações livres, autónomas em relação a qualquer poder, mas ao mesmo tempo leais à sua própria sociedade. Em última análise, um aliado fundamental dos diversos poderes para o desenvolvimento dessa sociedade que a todos diz respeito. O anichamento das universidades nas organizações religiosas resulta de um processo histórico que nos permite observar de que forma é que este nível de estudos foi sendo aproveitado e dominado pelos diversos poderes na História da Humanidade.
Nos últimos séculos, se considerarmos essencialmente os últimos 4 séculos: o Mercantilismo, o Século das Luzes, a Revolução Burguesa, a Revolução Industrial, a Revolução Bolchevique, o Neoliberalismo e por aí acima, havemos de ver que cada uma destas fases históricas procura puxar para si o controlo dos estudos superiores, travestindo às universidades à sua imagem e semelhança. De certa forma, podemos considerar que há uma face chamada universidade, que cede, mas a memória histórica da origem das universidades permanece e atravessa todas as vicissitudes que vai encontrando ao longo da História. Com isto, podemos afirmar que o debate entre se a universidade é o espaço de elite ou de massas é um debate de premissas silogísticas, porque é a essência da Humanidade, quando se organiza um grupo social, que a mesma crie um sistema organizacional e os estudos superiores fazem parte desse sistema organizacional com uma função de vanguarda na busca permanente do conhecimento e na formação adequada dos cidadãos para perseguir com ética e com competência os caminhos do desenvolvimento.
No fundo, as universidades são aparentemente um espaço da elite, mas não são uma elite económica, nem elite empresarial, nem elite política, militar, mas sim uma elite estritamente intelectual e académica, que não poucas vezes tem os recursos de sobrevivência estritamente necessários para o dia-a-dia. Quer isto dizer que os académicos, que são fundo são os operadores do espaço universitário, eles próprios não constituem elite, no sentido dos vários factores acima apresentados, mas sim, uma elite especial, por desenvolver actividades também especiais, na sociedade. Ao espaço universitário devem aceder os mais capazes, porque é com eles que a sociedade pode avançar. A elitização dos cidadãos não se faz, por isso, no espaço do ensino superior, mas sim fora desse mesmo espaço, porque dentro dele, o cidadão em formação é um simples aprendiz. Ele pode ser cooptado cá fora e integrar as várias elites do poder, mas este não é um problema da universidade.

Consideramos, portanto, que o debate universidade para as massas ou para a elite pode perfeitamente ser neutralizado, se tivermos em conta que todo o cidadão aspira um dia ter acesso a esse mesmo espaço e que a não concretização dessa mesma aspiração não depende apenas dele próprio, mas sobretudo da forma como a sua sociedade está organizada.

Lourenço do Rosário - Docente Universitário e Reitor da Universidade A Politécnica
Fonte aqui

Wednesday, November 24, 2010

O Ensino superior e cooperação internacional [1]

Do Professor Lourenço do Rosário, Reitor da Universidade A-Politécnica, surge uma reflexão interessante sobre o Ensino Superior e a cooperação internacional. Vamos ler e possivelmente comentar e debater este assunto aqui.

NOS tempos que correm, habituámo-nos a designar de uma forma quase que indistinta os vários segmentos e natureza das várias categorias provedoras dos estudos superiores. Assim, designamos, praticamente sem qualquer crivo, as instituições de ensino superior como sendo escolas superiores ou institutos de educação superior, para além dos seus derivados e ou associados, como centros e faculdades.

A diluição em apreço não significa necessariamente que estas designações se estão a aproximar do grau zero e que a meta é que todas elas sejam a mesma coisa, isto é, os desígnios de uma Escola Superior serão os mesmos de um Instituto e que, em última análise, tanto faz e que tudo são as mesmas formas ou categorias de Universidade. Por isso, a fórmula Instituições de Ensino Superior parece niveladora, embora a mesma esteja prenhe de equívocos semânticos na sua relação entre a natureza, as características e os objectivos de cada e de todas elas em conjunto.

O homem, desde os primórdios do tempo, procurou sempre adquirir e dominar o conhecimento que lhe permitisse melhor sobreviver, na sua relação com a natureza e na compreensão da sua própria vida, quer na vertente singular, isto é, como indivíduo, quer como ser colectivo, visto a sua natureza ser gregária.

E o método de observação, hipóteses, experimentação para posterior adopção de teorias sufragadoras da cientificidade de algumas práticas empíricas tem a idade do próprio homem. É entre a física e a metafísica que devemos colocar o pulsar permanente do homem na história do estudo de como dominar a natureza e o entendimento sobre a vida. As demais áreas do conhecimento, tais como a Biologia, a Medicina, as diversas formulações Matemáticas, bem como os estudos de natureza social e humana e, por fim, a reflexão filosófica e teológica são progressos deste primeiro passo, cujo enfoque é na Física e na Metafísica.

A descoberta do fogo, por exemplo, pode ter sido casual e o seu uso por muito tempo perfeitamente empírico, mas o seu domínio e sua utilização no avanço das diversas tecnologias decorrentes do fogo, tais como a fundição, a pirotecnia e consequentes derivados, nomeadamente ao fabrico de armas, utensílios domésticos e agrícolas, bem como o seu papel na passagem do cru para o cozido, deveu-se à utilização do sistema metodológico que ainda hoje usamos nas ciências.

Na organização social, há, naturalmente, uma rigorosa distribuição de tarefas, por isso, existe aquele grupo que se ocupa do estudo dos fenómenos, de modo a produzir conhecimento que proporciona conforto físico e espiritual à sociedade no seu todo e a cada membro. Esse grupo ocupa-se igualmente da formação dos membros como um todo e garante a reprodução de alguns que darão continuidade à sua função. Desde que a criança nasce, ela é enquadrada num sistema iniciático de aprendizagem, acedendo ao conhecimento já produzido e dominado, quer a nível social, bem como ao nível familiar, nos fora público e privado. É esse conjunto de saberes que permite balizar as fronteiras de identidade de cada grupo e de identificação social e cultural de cada indivíduo ou família com o seu próprio grupo social. Por isso, devemos também escalonar o sistema de acesso ao conhecimento, conforme a idade e o processo de aprendizagem. E aqueles que conseguem ter acesso aos escalões do aprendizado com grau de dificuldade maior, ocuparão naturalmente posições mais destacadas na hierarquia social, nas várias vertentes de ocupação que a própria sociedade proporciona. Assim, desde sempre, o escalonamento do processo de aprendizagem e de acesso ao conhecimento tem em consideração um nível superior dos estudos na escola organizada para a vida, pública e privada, como por exemplo, nas lides pela produção de alimentos, na caça, contra as intempéries da natureza, na construção dos abrigos, na defesa contra animais ferozes ou contra o inimigo humano, na busca do entendimento sobre a própria vida perante a inexorável fatalidade da morte, na definição de obrigações e interdições que regulem as relações sociais e metafísicas, na busca da cura física e espiritual das maleitas e demais capítulos do conhecimento. Esta escola da vida foi sempre estruturada para responder ao estágio das necessidades de cada grupo social e, ao mesmo tempo, serviu de alavanca para a busca de mais conhecimento que permitisse o avanço dos instrumentos teóricos e tecnológicos facilitadores de cada vez maior conforto material e espiritual ao Homem.

Por isso, o conceito de estudos superiores não pode ser padronizado e enquadrado a partir de um determinado momento histórico de qualquer civilização que seja. Quer isto dizer que todas as comunidades que povoam a terra, desde o momento em que se constituíram e começaram a organizar-se para dominar o conhecimento para o seu próprio benefício, tiveram que escalonar o acesso a este conhecimento, de modo que o seu domínio fosse adquirido em conformidade com a idade e capacidade dos seus membros. Por isso mesmo, nem todos chegavam aos patamares mais altos e, por isso mesmo também, existe o princípio de especialização como consagração da necessidade de distribuição de tarefas. Platão, na sua obra “República”, reflectindo sobre a Cidade Ideal, não faz mais do que consagrar o primado da filosofia sobre as outras formas de conhecimento na liderança das sociedades, considerando ele que filósofo é aquele que atingiu o patamar mais alto da sabedoria, e por isso mesmo ele estaria mais apto para dirigir os destinos da cidade.

COM a introdução que acabo de apresentar, pretendi delimitar o entendimento que se deve ter das designações, nomeadamente o seu alcance, tendo em conta aspectos de ordem histórica e respectivas contextualizações. Assim, temos que o conceito de Estudos Superiores deve ser entendido como sendo imanente à evolução do desenvolvimento das sociedades, na busca e ou acesso ao conhecimento ou domínio das tecnologias próprias de cada momento histórico, de modo a garantir todas as facetas de sobrevivência e conforto. Os estudos superiores eram a etapa cimeira no processo iniciático da aprendizagem de habilidades mentais, técnicas, mágicas e religiosas. O conhecimento era transmitido dentro do processo de crescimento dos membros da comunidade, desde os momentos iniciais, isto é, desde o nascimento, no seio familiar, passando de grau em grau, até aos níveis superiores. Nestes níveis, de uma forma geral, o acesso ao conhecimento tomava a configuração ritualística secreta, dependendo das especializações, e a sua transmissão fazia-se segundo a fórmula de revelação. Assim os ourives, os caçadores, os provedores de sementes, os feiticeiros, os adivinhos, os curandeiros, os sacerdotes, os filósofos, os guerreiros e por aí em diante iam introduzindo os aprendizes nos segredos e mister de saber e saber fazer de cada ofício. Através deste processo se operava também a subida e o posicionamento de cada um na hierarquia organizativa da sociedade.

Os estudos superiores assim entendidos enquadravam-se no universo cultural da comunidade, por isso eram património de toda a sociedade. Eles precedem, por isso, toda a organização institucional e corporativa da educação superior que a história tem consagrado e que na actualidade está em uso. Não se pode, por isso, determinar-se um marco no tempo de quando surgiram os estudos superiores, porque eles sempre existiram nas sociedades.

Do ponto de vista da história desta matéria, com o evoluir da organização das comunidades em grupos sociais mais complexos e, consequentemente, com o surgimento dos Estados e respectivas formas de governação, os estudos superiores passaram a ser alvo de especial atenção de diversos pólos do poder, desde o poder profano de governação dos homens e do mundo terreno, ao poder sacro das almas e dos céus. Foi deste modo que surgiram as Escolas vocacionais de educação superior, onde se aliavam as tarefas de busca de novos conhecimentos que pudessem fazer avançar o entendimento das coisas terrenas ou celestiais em prol do melhor domínio da natureza e salvação, mas também onde se acederia ao conhecimento acumulado e sistematizado por buscas anteriores, mas condicionados aos interesses últimos do próprio poder. As escolas de educação superior ou simplesmente Escolas Superiores foram as primeiras instituições de formação superior que debitavam o conhecimento em função do seu instituidor, fosse ele o Estado, o Mecenas ou as Corporações. Comparativamente, o surgimento das Escolas estreita as margens da interpenetração das diversas especialidades. Assim, se uma escola se dedicava à Física, a Filosofia tinha poucas possibilidades de aí penetrar, assim como os estudos religiosos de teologia ficavam longe da economia ou da astronomia etc.

O mundo deixava de ser visto como um conjunto com várias faces.

Tomemos, como ponto de partida, algumas recomendações apresentadas no comunicado final da Conferência Mundial sobre o Ensino Superior, realizada em Paris e organizado pela UNESCO, em Julho de 2009. Entre os inúmeros pontos, o comunicado em apreço enfatizava a questão da função social das instituições de ensino superior. O comunicado começa por declarar que a Educação Superior é um bem público. Quer isto dizer que a essência da Educação Superior é estar ao serviço das comunidades, permitindo que os seus membros usufruam do conhecimento por si produzido e transmitido. Refere ainda o Comunicado que a Educação Superior enfrenta desafios complexos, actuais e futuros, mas é sua a responsabilidade de avançar o conhecimento, sobre as mais diversas questões que envolvem dimensões culturais, científicas, económicas e sociais. Deve ainda a Educação Superior gerar conhecimento para enfrentar desafios globais relativos à segurança alimentar, mudanças climáticas, o uso da água, energias renováveis, saúde pública, diálogo de inclusão, a ética, a cidadania activa, contribuindo assim para a construção de um clima de paz, direitos humanos, género, etc. Este notável documento não faz mais do que actualizar os desideratos que foram sendo enunciados ao longo da história sobre a função da Educação Superior.

Foi reconhecendo a força que tem, que a Educação Superior sempre insistiu na sua autonomia académica e científica. A congregação dos estudos superiores em escolas e institutos, centros ou faculdades foi sempre acompanhada por pressões atentatórias ao princípio da autonomia. Os pressupostos são díspares, mas o fim é sempre o mesmo, pois quem controla o centro do saber, controla o próprio poder.


Lourenço do Rosário - Docente universitário e Reitor da Universidade A Politécnica.
Texto retirado daqui


























Tuesday, November 16, 2010

O Brasil de Lula em Moçambique

O Sociólogo Marílio Wane, membro da Associação Moçambicana de Sociologia (A.M.S), apresenta-nos mais uma reflexão interessante. Desta feita, trata-se da análise da relação Brasil- Moçambique e suas implicações para o segundo país, na sequência da última vistita efectuada por Lula da Silva a Moçambique.Leia o texto na integra aqui. Assim como Wane, poderá publicar suas análises neste espaço.

Saturday, October 9, 2010

Vamos combater a credulidade: Da dor de pensar (Conclusão)

Sociólogo Elísio Macamo convida-nos à combater a credulidade numa série que está a ser publicada pelo Jornal Notícias, e que será aqui reproduzida na íntegra.

Maputo, Sábado, 9 de Outubro de 2010:: Notícias

CHEGUEI ao fim da série. Muita coisa ficou ainda por ser dita. Construir a democracia não é empresa fácil, sobretudo quando nem é evidente porque é preciso construir essa democracia. Conflitos fazem sociedades. A procura de soluções para esses conflitos reforça o sentido de comunidade. No nosso país parece ainda existir uma grande indefinição em relação ao que queremos como nação. Cada um de nós tem frases feitas na ponta da língua, frases do tipo “acabar com as desigualdades”, “reforçar a auto-estima”, “promover o empreendedorismo”, “eliminar a pobreza”, “promover a justiça social”, “acabar com a corrupção”, etc., são frases que apontam para objectivos nobres e a vozearia que a sua proclamação excitada provoca pode, por vezes, sufocar a voz mais tímida que nos devia unir.

Há filósofos, representados pelo americano Michael Walzer, que defendem uma visão minimalista da moral. Os argumentos que apresentam para tal parecem-me pertinentes para a reflexão que se impõe sobre os distúrbios de 1 de Setembro bem como sobre a facilidade com que muitos de nós caímos nas malhas da credulidade conferindo credibilidade a falsos profetas. O que esses filósofos dizem é simplesmente que a moral tem um lado fino e outro lado denso. O fino assenta simplesmente no reconhecimento, pelo menos à distância, do que é bom ou mau. Qualquer um de nós tem a capacidade de se indignar pelo sofrimento do outro. Saber que há gente que passa privações, não sabe onde encontrar os meios de garantir a sua próxima refeição, etc., dói a qualquer pessoa. A capacidade de sentir essa dor faz de nós humanos. Não obstante, o sofrimento visto à distância e o sofrimento que precisa de ser abordado de forma prática de perto são coisas diferentes. O que faz a diferença é o lado “denso” da moral, pois deste lado o que é mau ou bom, é-o em função da vivência de cada um de nós, das experiências que vamos colhendo no dia a dia. É por isso que podemos facilmente criticar o governo pela pobreza, mas no nosso próprio dia-a-dia nada fazemos para a aliviar ajudando os mais necessitados por iniciativa própria.

Quem quiser abordar problemas morais práticos a partir do lado “denso” e só desse está condenado ao fracasso, pois o único argumento que ele pode esgrimir é o da força. Por exemplo, um dos problemas do auxílio ao desenvolvimento – nesta perspectiva – é justamente de que ele não é apenas a manifestação de indignação perante o sofrimento do outro, mas também a tentativa de resolver essa situação impondo a sua visão moral aos outros, cuja vivência e história são necessariamente outras e, consequentemente pouco susceptíveis de mudarem sem resistência e subversão. É daí que não basta proclamar o combate à pobreza: é preciso também introduzir a democracia, o estado de direito, isto mais aquilo, etc. Corremos este risco sempre que participamos no debate público convencidos de que o que nós julgamos bom é bom para todos. Na verdade, o único que precisamos de reconhecer – e aceitar como uma questão de princípio – é que cada um de nós tem a capacidade de se indignar pelo sofrimento dos outros e, partindo daí, lutarmos por um espaço de reflexão pública que não comprometa a possibilidade de continuarmos a conversar.

A condição para fazermos isto é oferecer resistência à credulidade. A credulidade está a matar o nosso país lentamente e aos bocadinhos. Aceitar tudo quando parece encaixar naquilo que consideramos correcto sem o mínimo cuidado de interpelar é a pior maneira de evitar que o país morra. Ver tudo sempre na perspectiva de quem está a favor ou contra o governo é a forma mais certa de garantir que o país se despedace. Usar os fóruns nacionais de debate – nos jornais e na Internet – para chamar de ladrões, arrogantes e oportunistas aos que, à sua maneira, tentam dar o seu contributo para um Moçambique melhor é a maneira mais segura de comprometer a viabilidade deste país. Seria estranho se o governo moçambicano fizesse tudo certo; seria estranho que não cometesse erros, não tivesse indivíduos só interessados consigo próprios. Na verdade, o tipo de análises que têm sido feitas na sequência dos acontecimentos de 1 e 2 de Setembro estão de forma muito curiosa e perversa a conduzir o governo a agir mais de forma politicamente oportunista. Para salvar a sua pele preferiu “ceder”, mas o que isso significa para o programa do governo e para as metas mais gerais de desenvolvimento só os espíritos é que sabem; o Chefe do Estado corta viagens, mas o que acontece ao dinheiro assim poupado, o que teria advindo da sua deslocação, etc. são questões que não interessa discutir e, curiosamente, nenhum crítico as levanta. E o que é mais grave ainda, pelo menos para mim, é que ainda nem começamos a discutir as implicações duma cultura política determinada a partir da rua por gente zangada, mas sem nenhum programa político. Só que para começarmos a abordar isto tudo tínhamos que abandonar a credulidade, algo que custa muito, pois implica pensar. E pensar dói.

  • ELISIO MACAMO - Sociólogo/nosso colaborador


Friday, October 8, 2010

Vamos combater a credulidade (8c): Dos das correlações



  1. Sociólogo Elísio Macamo convida-nos à combater a credulidade numa série que está a ser publicada pelo Jornal Notícias, e que será aqui reproduzida na íntegra.


    Quando publiquei, pela primeira, a crítica que o leitor viu nos dois artigos anteriores, Josué Muchanga, um internauta perspicaz, fez o comentário que reproduzo em seguida:

    Maputo, Sexta-Feira, 8 de Outubro de 2010:: Notícias

    ... as privações extremas conduzem necessariamente ao boato e aos linchamentos? Podemos então assumir que em Moçambique sempre que ocorrerem "privações de todo o tipo" teremos que esperar boatos e assassinatos de gente inocente?
    Este debate está muito excitante. As contribuições dos intervenientes são magníficas, contudo, a questão levantada pelo anónimo (acima assinalada em itálico) acaba por suscitar outras inquietações, diversas das tratadas por Elísio (Macamo) neste artigo.
    A questão em causa é se será razoável transformarmos o estudo do professor Carlos Serra em proposições gerais? Podemos generalizar os resultados do estudo para outras circunstâncias similares? Tenho as minhas reservas. Suponho que este estudo apenas procura perceber e explicar situações particulares de determina comunidade em certa região. Ao tentarmos transformar os resultados de estudo em lei, modelo ou proposições gerais, corremos o risco de repetir os problemas já denunciados primeiro por David Hume e depois por Karl Popper e David Miller, sobre as questões ligadas à validade do método indutivo.
    Portanto salvo melhor opinião, julgo que a validade do estudo do professor Carlos Serra circunscreve-se apenas às particularidades e circunstâncias que o determinaram. Ao fazermos generalizações estaríamos a exportar alguns resultados que nada têm a ver com as outras circunstâncias em estudo.
    As críticas que teci ao estudo, repito, não o invalidam, nem põem em causa a autoridade científica do autor. Elas põem em causa o modelo explicativo, o mesmo que uma boa parte dos nossos pensadores empregam para abordar os problemas do país. Leis universais do tipo “sempre que o governo for indiferente as pessoas vão agir assim e assado” são úteis, num primeiro momento, como ponto de partida para a formulação de hipóteses e, acima de tudo, para a focalização da atenção num objecto e num universo concreto. No caso da cólera, dos linchamentos ou da chuva amarrada, por exemplo, partimos daí para a descrição das pessoas envolvidas, suas características sociais, suas motivações, sua inserção nos meios em questão e, muito importante, o que os torna diferentes dos outros. Num segundo momento, porém, leis universais são um grande problema porque sugerem um tipo de conhecimento que as ciências sociais dificilmente podem produzir. Sugerem uma capacidade de previsão de fenómenos sociais que o objecto das ciências sociais se recusa a nos disponibilizar. A sociedade constitui-se historicamente e subtrai-se, por essa via, muitas vezes ao olhar vaticinador da ciência. Não é que não seja possível de nenhuma maneira tecer vaticínios sobre fenómenos sociais. Afinal sabemos, por exemplo, que a educação melhora as possibilidades de se conseguir emprego. Mas vejam bem: melhora, não garante. Precisaríamos de um mundo muito bem controlado para realizarmos as nossas profecias.
    Quem, sob o peso da credulidade, lê estes estudos como a revelação da verdade viola vários mandamentos formulados brilhantemente pelo Professor Serra no seu “decálogo do sociólogo” no livro “Combates pela mentalidade sociológica”, sobretudo no que diz respeito à atitude crítica. Quem é refém da credulidade facilmente vê nas críticas que eu formulei manifestações do que, segundo um comentário que li na internet, “(É) em meu entender fascinante analisar os discursos ‘analíticos’ (com verniz dito científico) que continuam a ser produzidos para fazer da revolta popular de 1/3 de Setembro uma machamba exclusivamente moral, abundantemente plantada com epítetos, condenações veementes, externalismos causais sem fim e ideias de circunstância que nunca terão continuidade em pesquisa real (...)
    “(na verdade, há muitos doutos habitantes de pesquisas que jamais serão feitas, mas que tudo fazem para passar a imagem de especialistas atarefados)”.
    Da credulidade passamos facilmente à celebração de soluções mais problemáticas ainda do que o problema levantado. Com efeito, já que a explicação recai sobre o Estado, o instinto totalitário que estimula muitos “críticos” sugere uma revolução, isto é a transformação radical do estado para passar a servir os interesses do povo. Não estranha, na verdade, que ninguém considere oportuno condenar a violência dos distúrbios. Tratou-se, na opinião dos crédulos, duma violência necessária. Esta atitude disvirtua o sentido das ciências sociais e do pensamento crítico. Mesmo partindo do princípio de que não podem prognosticar certas coisas, elas podem contribuir com conhecimento que permita às autoridades, às comunidades e aos indivíduos reagirem com medida e se protegerem das consequências mais nefastas de certos actos. No caso da cólera ou, já agora, de distúrbios por causa da carestia da vida, podemos contribuir com reflexões sobre o perfil dos envolvidos; podemos identificar os mecanismos sociais que falharam e permitiram que a insatisfação desembocasse na violência; podemos investigar as formas de reacção das autoridades e ver em que medida elas podem contribuir para a escalada, e como evitar isso. Enfim, há uma série de elementos que podemos procurar recolher como contribuição não para evitar que certas coisas aconteçam – que isso é quase impossível – mas sim para reagir com maior eficácia às suas consequências.
    E. Macamo - Sociólogo, nosso colaborador

Thursday, October 7, 2010

Vamos combater a credulidade: Dos das correlações (8b)

Sociólogo Elísio Macamo convida-nos à combater a credulidade numa série que está a ser publicada pelo Jornal Notícias, e que será aqui reproduzida na íntegra.

Maputo, Quinta-Feira, 7 de Outubro de 2010:: Notícias

COMO ler criticamente um estudo tão bem feito como este? Ainda há espaço para distância crítica? A correlação entre apatia do Estado e crença no mito da cólera é, nos dados apresentados pelo estudo, tão elevada que não pode haver outra maneira de interpretar os resultados. Existem basicamente três estratégias para interpelar criticamente este tipo de argumento. Todas elas consistem em perguntas. A primeira pergunta é a seguinte: será que existe mesmo uma correlação entre A e B? A segunda não menos importante é a seguinte: haverá alguma razão para supor que a correlação não seja simplesmente pura coincidência? Finalmente, a terceira pergunta é: é concebível que haja um terceiro factor (digamos C) que constitui a causa de A e B? Esta última pergunta não é inocente. Na verdade, há muitas correlações que fazemos no quotidiano e que se explicam, muitas vezes facilmente, com recurso a uma terceira variável. Por exemplo, podíamos associar a quantidade de estragos num incêndio ao número de bombeiros que o debelaram e concluirmos que os bombeiros são a causa do estrago. Contudo, pode ser que o tamanho do incêndio tivesse exigido mais bombeiros pelo que o próprio tamanho é que seria responsável pelos estragos. Por conseguinte, a nossa distância crítica tem que nos conduzir a eliminar outros factores que possam estar por detrás da correlação imputada. Pensar criticamente significaria, neste caso, justamente eliminar esses factores.
Colocadas as coisas desta maneira, podemos começar a ver alguns problemas com o estudo. Em relação à primeira pergunta (será que existe mesmo uma correlação entre A e B?) podemos, socorrendo-nos dos dados facultados pelo estudo, dizer que de facto existe uma correlação entre a apatia do Estado e a crença popular. Os vários depoimentos são prova disso. Abro aqui, porém, um parêntesis para dizer que seria interessante perguntar também se em todo o lado onde se manifesta este tipo de crença o Estado é visto como sendo apático ou, dito de outra maneira, porque sendo o nosso Estado geralmente apático (suponhamos) não se verificam estas crenças noutros pontos do país com a intensidade que elas têm em Nampula? Estas perguntas são particularmente pertinentes na consideração da terceira pergunta mais adiante.
A resposta à nossa segunda pergunta (haverá alguma razão para supor que a correlação não seja simplesmente pura coincidência?) é menos linear. Há um investimento normativo muito forte por parte dos investigadores para estabelecer a responsabilidade do Estado. A (ir)responsabilidade do Estado é a resposta padrão dos estudos feitos pela Oficina de Sociologia. Porque há linchamentos? Porque há privatização da justiça face à inoperância do Estado. Porque as pessoas frequentam as igrejas pentecostais? Porque estão a reagir à ausência do Estado cuja responsabilidade é escondida pelo discurso da culpa pessoal das preces feitas nessas igrejas. O que quero dizer com isto é que o estudo foi feito com a intenção de “desnudar o mito da cólera” através da obtenção de “... conhecimento das opiniões dos cidadãos sobre o Estado no concernente à prestação de serviços essenciais como água, saúde e educação”. Conhecidas que são as “insuficiências” do nosso Estado, era concebível que o discurso popular fosse diferente do apurado? Não me parece. Em certa medida, portanto, o estudo confirmou a sua própria profecia.
Contudo, há aqui e ali elementos interessantes que vão sobressaindo dos depoimentos populares. Por exemplo, fala-se de conflitos entre duas interpretações do Islão; fala-se de conflitos entre os jovens e os mais velhos; fala-se de conflitos entre mulheres e homens, embora (tendo em conta o facto de se tratar de sociedades matrilineares) me pareça haver exagero na apresentação da novidade do protagonismo feminino. Estes conflitos são secundarizados no estudo e não merecem a atenção prolongada dos investigadores. O que me parece uma pena. Na verdade, teria sido interessante cruzar estes conflitos com o perfil social daqueles que se envolveram no ataque aos agentes da autoridade e procurar saber se aí também há correlações a fazer. É verdade que do ponto de vista da pesquisa seria difícil encontrar pessoas que tivessem a coragem de dizer que cometeram delitos, mas mesmo assim a partir dos depoimentos teria sido possível estabelecer correlações entre estes outros conflitos e as crenças. Os autores não fizeram nada disso e esta omissão parece-me constituir o calcanhar de Aquiles de um estudo que, de outro modo, é um excelente exemplo da pesquisa social empírica. A responsabilidade, porém, não está nos autores, mas naqueles que vão ler o estudo sem procurar interpelar as suas conclusões para além do que foi dito.
À terceira pergunta (é concebível que haja um terceiro factor (digamos C) que constitui a causa de A e B?), para voltarmos à vaca fria, podemos responder afirmativamente. Podíamos dizer que a crença em si é manifestação de ignorância ou de estruturas tradicionais de pensamento, mas que isso em si não é fundamental. O que é fundamental é explicar a reacção violenta na sequência da crença. Aí podíamos dizer que quer a reacção violenta, quer a apatia do Estado são fenómenos que são explicados pelo desmoronamento das estruturas de autoridade naquela região de modo que a nossa atenção não se deve cingir apenas às críticas ao Estado, mas às transformações que ocorrem naqueles meios. E, de facto, os vários outros conflitos mencionados, mas não aprofundados, revelam que a questão da autoridade é fulcral. É interessante notar que as pessoas, no fundo, sabem que o cloro não causa a cólera. Desconfiam das intenções dos representantes do Estado, mas esta desconfiança não explica a sua reacção violenta. No artigo a seguir fecho esta mini-série de três artigos.
E. Macamo - Sociólogo, nosso colaborador

Wednesday, October 6, 2010

Vamos combater a credulidade Dos das correlações (8a)

Sociólogo Elísio Macamo convida-nos à combater a credulidade numa série que está a ser publicada pelo Jornal Notícias, e que será aqui reproduzida na íntegra.



Maputo, Quarta-Feira, 6 de Outubro de 2010:: Notícias

VOU ter que discutir o tema das correlações em três textos seguidos. Acho importante fazer isto porque a problemática que vou tratar tem estado, do lado académico, no centro de como abordamos um bom número de fenómenos sociais no nosso país. O tipo de argumento que me interessa, e que pode fomentar a credulidade, consiste em chegar a conclusões a partir da constatação de correlações e partir dessas correlações para uma causa. No fundo, não há nada de errado neste procedimento e, aliás, a responsabilidade pelas conclusões que são tiradas não pertence aos autores, mas sim a nós os leitores que preferimos dá-las por adquirido.

Existe, felizmente, um trabalho científico da autoria do Professor Carlos Serra do Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane com o título Cólera e Catarse, realizado em 2002 na província de Nampula, que, em minha opinião, usa este tipo de argumento. Talvez seja bom dizer de imediato que a minha análise não põe em causa a autoridade científica do autor. Faço este reparo porque quando publiquei este texto pela primeira vez na Internet houve reacções bastante agressivas de gente que ignorou os reparos metodológicos que fiz e preferiu questionar as minhas motivações. Que a crítica por pares faz parte da vida académica passou completamente despercebido a essas pessoas. Sendo o Professor Serra o sociólogo mais produtivo ao nível da pesquisa no país e, ainda mais, debruçando-se sobre fenómenos de grande interesse público – e politicamente relevantes – é importante não só prestar atenção ao que ele diz, mas proporcionar aos interessados instrumentos com os quais eles possam digerir essa produção sem caírem na credulidade como alguns têm, infelizmente, feito.

Vou começar por expor a obra de forma breve e, no artigo a seguir a este, vou tecer comentários à sua volta. O estudo debruça-se sobre os ataques contra agentes de saúde em Nampula perpetrados por populares que acreditavam que estes eram quem causava a cólera. Segundo os autores – a pesquisa foi feita por uma equipa de investigadores – a crença popular (de que a cólera é introduzida pelo governo através do cloro) não é algo irracional como alguns de nós nos sentiríamos inclinados a crer. Ela documenta uma crítica popular ao Estado que não é dialogante, é ineficaz na solução dos problemas do povo, é representado por funcionários alheios aos anseios do povo e tudo isto num ambiente de privações. Na verdade, segundo o estudo a crença pode ser irracional do ponto de vista da explicação científica das causas da cólera, mas perfeitamente coerente com aquilo que os autores do estudo chamam de “consciência de privação”.

De certa forma, portanto, o estudo diz-nos que esta crença é o resultado de um Estado, digamos, problemático contra o qual os populares reagem. Do ponto de vista formal, a estrutura do argumento é simples e consiste de uma premissa apenas. A premissa diz que existe uma correlação entre A (natureza do Estado) e B (crença popular). A conclusão é de que A é a causa de B. A hipótese formulada para o estudo gira em torno deste argumento: “A crença de que a cólera é introduzida pelo governo em Nampula através do cloro (fenómeno) é um indicador de insegurança popular (nível 1) ampliada pela tensão política (nível 2.”. Já na preparação da problemática os investigadores haviam anunciado a intenção de “desnudar o mito da cólera” através da obtenção de “... conhecimento das opiniões dos cidadãos sobre o Estado no concernente à prestação de serviços essenciais como água, saúde e educação”. O estudo confirma o nível 1 (a crença como indicador de insegurança popular), mas não encontra sustento para o nível 2 (a crença é ampliada pela tensão política).

Para este efeito, os investigadores entrevistaram várias pessoas em alguns distritos da província de Nampula. Essas entrevistas produziram depoimentos muito interessantes que, na interpretação dos investigadores, revelam um mal-estar popular em relação ao papel do Estado. Os dados obtidos desta maneira em todos os distritos inquiridos convergem na apreciação negativa do papel do Estado e de algumas ONG’s, por um lado, e na reacção que consiste em atacar os agentes do Estado e das ONG’s como vectores do mal. O estudo critica duramente aqueles entrevistados, na sua maioria representantes do Estado, que atribuem a acção popular ao analfabetismo e à ignorância. Ele tenta mostrar que a crença não tem nada de irracional, mas é uma reacção à indiferença e oportunismo dos agentes do Estado. Os leitores que acompanham a produção do autor principal vão notar que se trata, na essência, do mesmo argumento que é utilizado para explicar os linchamentos e, porque não, distúrbios como os de 5 de Fevereiro e 1 de Setembro: falta de confiança no Estado, logo, reacções populares bizarras encontram a sua lógica no comentário crítico que tecem sobre esse Estado. Amanhã vou prosseguir com uma leitura crítica.

  • E. Macamo - Sociólogo, nosso colaborador

Vamos combater a credulidade (7) Dos da classificação

Sociólogo Elísio Macamo convida-nos à combater a credulidade numa série que está a ser publicada pelo Jornal Notícias, e que será aqui reproduzida na íntegra.


Maputo, Terça-feira, 5 de Outubro de 2010, Notícias

Se eu dissesse que todos os países situados no continente africano são africanos poderia, validamente, concluir também que Moçambique – por se situar também no continente africano – é um país africano. Estou a fazer uma classificação verbal da noção “país africano”, classificação essa que me é facilitada pela convenção geográfica. O que acontece, porém, é que esta facilidade nem sempre existe. E justamente por ela não existir podemos nos tornar bastante crédulos em relação ao debate na esfera pública. Na verdade, há muitos argumentos baseados na classificação verbal na nossa esfera pública e que dependem do uso corrente de certas palavras no quotidiano. Por exemplo, em Maputo dizemos que toda e qualquer pessoa que falta à sua palavra, não se compromete e tem sempre saída para situações difíceis é um “mafioso”. Partindo dessa classificação verbal poderíamos concluir, olhando para um indivíduo que faltasse à palavra, não se comprometesse e sempre tivesse saída para situações difíceis, que essa pessoa é “mafiosa”.

Estamos, portanto, a dizer que uma certa entidade individual contém uma determinada propriedade e que a posse dessa propriedade implica a presença de uma outra propriedade. Se provarmos que uma pessoa tem determinadas características que definimos como sendo “mafiosas”, então essa pessoa é mesmo mafiosa. Isto é normal no quotidiano, na verdade, tão normal que estamos sempre a argumentar dessa maneira. Quando dizemos que o governo é arrogante fazemo-lo em função de premissas classificatórias que supomos estarem presentes na conduta do governo. Reparem, contudo, que estes argumentos baseados na classificação verbal têm um teor normativo muito elevado que pode limitar a discussão. Por exemplo, alguém pode dizer “essa ideia compromete as metas definidas”, logo, “essa ideia está errada”. Este é o ambiente do que, no país, se chama de “seguidismo”, “bajulação”, “yes-man”, “lambe-botismo”, etc.

Há remédios críticos para isto. E são duas perguntinhas. A primeira pergunta é de saber que provas existem realmente de que uma determinada entidade contém determinada propriedade. Por exemplo, que provas existem realmente de que a “conjuntura internacional” contenha as premissas classificatórias que justificariam o uso dessa noção para justificar a alta de preços? A segunda pergunta seria de saber se a classificação verbal contida na premissa classificatória deriva de uma definição objectiva ou de uma definição que pode ser questionada. Por exemplo, eu poderia argumentar que mesmo se de facto a alta de preços constitua uma reacção directa à conjuntura internacional, essa mesma conjuntura pode permitir que o governo comece a fazer coisas que noutras circunstâncias não poderia fazer. Estou a pensar, por exemplo, no relaxamento das medidas de ajustamento estrutural que poderiam permitir outros tipos de intervenção do governo na economia. Estou a ver também a possibilidade de o trigo produzido no país em condições ineficientes ganhe oportunidades no mercado em resultado da alta do produto internacional. Constrangimentos são também oportunidades. O truque é colocar as perguntas certas para se poderem identificar essas oportunidades.

Ora, o que se verificou entre nós quando o governo falou da conjuntura internacional foi simplesmente rejeitar ou aceitar esse argumento. Ninguém – eu também não – teve o cuidado de perguntar de que maneira exacta é que essa conjuntura afecta o país e que novas oportunidades surgem daí. Infelizmente, há quem se deixe vitimizar ou calar a boca por argumentos baseados na classificação verbal. A minha crítica ao discurso anti-corrupção parte do meu desiderato de resistência a estas classificações verbais. Não é que esteja a favor da corrupção ou negue a sua existência; é que me incomoda o elemento normativo que conduz a um clima que o antropólogo português José Teixeira memorávelmente chamou de “denúncia” numa discussão na internet. A minha crítica aos “críticos” parte também do meu desiderato de resistência ao uso descuidado que eles fazem de classificações verbais. Um exemplo particularmente pertinente é o uso de expressões como “democracia”, “injustiça”, “competência”, “corrupção”, “integridade” e várias outras com um teor normativo muito elevado para classificar acções do governo ou a postura dos próprios críticos e, por via disso, colocar um manto de penumbra total sobre os assuntos. Ou seja, o uso destas classificações permite a criação de um ambiente dentro do qual o governo é automaticamente identificado com tudo quanto é contrário à justiça e democracia, enquanto que aqueles que se arrogam a prerrogativa de classificar se identificam automaticamente com tudo quanto é justo e democrático. Este tipo de gente é, por exemplo, muito hostil à pergunta crítica porque ela obriga-nos a diferenciar e quando diferenciamos podemos chegar à conclusão de que uns não são realmente como gostariam de ser vistos. Os distúrbios de 1 de setembro e as reacções que os acompanharam mostram claramente – pelo menos a mim – que muita gente no país que diz ser democrata de democrata tem muito pouco.