Saturday, October 9, 2010

Vamos combater a credulidade: Da dor de pensar (Conclusão)

Sociólogo Elísio Macamo convida-nos à combater a credulidade numa série que está a ser publicada pelo Jornal Notícias, e que será aqui reproduzida na íntegra.

Maputo, Sábado, 9 de Outubro de 2010:: Notícias

CHEGUEI ao fim da série. Muita coisa ficou ainda por ser dita. Construir a democracia não é empresa fácil, sobretudo quando nem é evidente porque é preciso construir essa democracia. Conflitos fazem sociedades. A procura de soluções para esses conflitos reforça o sentido de comunidade. No nosso país parece ainda existir uma grande indefinição em relação ao que queremos como nação. Cada um de nós tem frases feitas na ponta da língua, frases do tipo “acabar com as desigualdades”, “reforçar a auto-estima”, “promover o empreendedorismo”, “eliminar a pobreza”, “promover a justiça social”, “acabar com a corrupção”, etc., são frases que apontam para objectivos nobres e a vozearia que a sua proclamação excitada provoca pode, por vezes, sufocar a voz mais tímida que nos devia unir.

Há filósofos, representados pelo americano Michael Walzer, que defendem uma visão minimalista da moral. Os argumentos que apresentam para tal parecem-me pertinentes para a reflexão que se impõe sobre os distúrbios de 1 de Setembro bem como sobre a facilidade com que muitos de nós caímos nas malhas da credulidade conferindo credibilidade a falsos profetas. O que esses filósofos dizem é simplesmente que a moral tem um lado fino e outro lado denso. O fino assenta simplesmente no reconhecimento, pelo menos à distância, do que é bom ou mau. Qualquer um de nós tem a capacidade de se indignar pelo sofrimento do outro. Saber que há gente que passa privações, não sabe onde encontrar os meios de garantir a sua próxima refeição, etc., dói a qualquer pessoa. A capacidade de sentir essa dor faz de nós humanos. Não obstante, o sofrimento visto à distância e o sofrimento que precisa de ser abordado de forma prática de perto são coisas diferentes. O que faz a diferença é o lado “denso” da moral, pois deste lado o que é mau ou bom, é-o em função da vivência de cada um de nós, das experiências que vamos colhendo no dia a dia. É por isso que podemos facilmente criticar o governo pela pobreza, mas no nosso próprio dia-a-dia nada fazemos para a aliviar ajudando os mais necessitados por iniciativa própria.

Quem quiser abordar problemas morais práticos a partir do lado “denso” e só desse está condenado ao fracasso, pois o único argumento que ele pode esgrimir é o da força. Por exemplo, um dos problemas do auxílio ao desenvolvimento – nesta perspectiva – é justamente de que ele não é apenas a manifestação de indignação perante o sofrimento do outro, mas também a tentativa de resolver essa situação impondo a sua visão moral aos outros, cuja vivência e história são necessariamente outras e, consequentemente pouco susceptíveis de mudarem sem resistência e subversão. É daí que não basta proclamar o combate à pobreza: é preciso também introduzir a democracia, o estado de direito, isto mais aquilo, etc. Corremos este risco sempre que participamos no debate público convencidos de que o que nós julgamos bom é bom para todos. Na verdade, o único que precisamos de reconhecer – e aceitar como uma questão de princípio – é que cada um de nós tem a capacidade de se indignar pelo sofrimento dos outros e, partindo daí, lutarmos por um espaço de reflexão pública que não comprometa a possibilidade de continuarmos a conversar.

A condição para fazermos isto é oferecer resistência à credulidade. A credulidade está a matar o nosso país lentamente e aos bocadinhos. Aceitar tudo quando parece encaixar naquilo que consideramos correcto sem o mínimo cuidado de interpelar é a pior maneira de evitar que o país morra. Ver tudo sempre na perspectiva de quem está a favor ou contra o governo é a forma mais certa de garantir que o país se despedace. Usar os fóruns nacionais de debate – nos jornais e na Internet – para chamar de ladrões, arrogantes e oportunistas aos que, à sua maneira, tentam dar o seu contributo para um Moçambique melhor é a maneira mais segura de comprometer a viabilidade deste país. Seria estranho se o governo moçambicano fizesse tudo certo; seria estranho que não cometesse erros, não tivesse indivíduos só interessados consigo próprios. Na verdade, o tipo de análises que têm sido feitas na sequência dos acontecimentos de 1 e 2 de Setembro estão de forma muito curiosa e perversa a conduzir o governo a agir mais de forma politicamente oportunista. Para salvar a sua pele preferiu “ceder”, mas o que isso significa para o programa do governo e para as metas mais gerais de desenvolvimento só os espíritos é que sabem; o Chefe do Estado corta viagens, mas o que acontece ao dinheiro assim poupado, o que teria advindo da sua deslocação, etc. são questões que não interessa discutir e, curiosamente, nenhum crítico as levanta. E o que é mais grave ainda, pelo menos para mim, é que ainda nem começamos a discutir as implicações duma cultura política determinada a partir da rua por gente zangada, mas sem nenhum programa político. Só que para começarmos a abordar isto tudo tínhamos que abandonar a credulidade, algo que custa muito, pois implica pensar. E pensar dói.

  • ELISIO MACAMO - Sociólogo/nosso colaborador