O sociólogo Elísio Macamo publicou no seu blog um texto extremamente importante. Trata-se de uma interpelação a um outro texto escrito por Jonathan McCharthy, igualmente, em seu blog. A maneira problemática como alguns de nós debatemos e sustentamos logicamente argumentos na nossa esfera publica continua a ser o aspecto central que informa o texto de Macamo. A lucidez e clarividência do argumento apresentado no texto por si justificam a sua importância didáctica, para não falar da incisiva crítica a natureza incendiária do texto de McCharthy. É um texto, o de Macamo, recomendável para qualquer aula sobre como as identidades sociais podem ser manipuladas e instrumentalizadas para fins políticos inconfessáveis.
Em preparação para uma conferência na Alemanhã estou a reler alguns livros. Vou destacar dois. Um dos livros é dum economista Indiano, Amartya Sen. O título do livro é: “Identity and Violence: The Illusion of Destiny”. Sen é mais conhecido pela sua obra na economia, onde desenvolveu a ‘teoria do desenvolvimento como liberdade’, que lhe valeu o prémio Nobel. O livro que estou a lêr tem um caracter mais filosófico que economicista e versa sobre a identidade e violência.
Ao lêr o texto do Elísio Macamo achei interessante a similaridade do seu argumento com aquele apresentado no livro de Sen. Esse argumento, no meu entender, capta profundamente o sentido do perígo que a escrita de McCharthy e muitos outros pode representar pelas suas consequências. O texto de Macamo não só denuncia os problemas lógicos de argumentação, mas como as identidades podem ser instrumentalmente usadas para fins políticos inconfessáveis e até culminar em actos de brutalidade.
O argumento de Sen, no livro que mencionei, é de que o conflito e a violência, em muitos países, são sustentados pela ilusão de uma identidade unica. Assim, por exemplo, os iludidos achariam que existe uma colectividade unica chamada “os do sul” que dominam a outra – “os não do sul”. O mundo é visto como estando dividido em pares binários simples de religiões (culturas ou civilizações) ou regiões (pontos cardinais), ignorando-se outras formas relevantes em que as pessoas se podem identificar tais como, classe, género, profissão, língua, literatura, ciência, música, moral, política etc. Negam-se assim as reais possibilidades de multiplas pertenças identitárias e se impõe catégorias rigidas de pertença. Os filhos do ex-presidente da República, Joaquim Chissano com Marcelina Chissano, são “do Sul” ou do “Norte”? Vivo com um amigo Moçambicano, nascido em Pemba, cujo apelido é similar ao meu: Langa. O meu amigo é do “Sul” ou do “Norte”? Já agora, “Jonathan McCharthy” que podia ser nome de qualquer residente do Cabo na África do Sul ou de um outro canto do planeta; em Moçambique, os McCharthy, são Machanganas, Macondes, Marrongas, Machopes, do Sul, centro ou do Norte? Se um McCharthy fosse ministro iria engordar as fileiras dos do “sul”, “centro” ou do “norte”? Pode um McCharthy ser Ndau, Sena, Machangane ou Chope? Como podem ver as nossas identidades são mais complexas do que os rótulos simplistas que alguns querem forçosamente nos atribuir.
O que gerou o genocídio no Ruanda, como se apressam alguns a concluir, não foram as identidades Hutu e Tusti, nem o dominio destes sobre aqueles, mas a redução das multiplas identidades dos ruandeses a simples pares binários em oposição considerados fundamentais. Como diz e bem Sen, “O Hutu trabalhador de Kigali pode ser pressionado a ver-se a si próprio apenas como Hutu e incitado a matar os Tutsis, ainda assim ele não é apenas Hutu, mas também Kigalês, Ruandês, Africano, Trabalhador, e acima de tudo ser humano”. Com o reconhecimento da pluralidade das nossas identidades e suas diversas implicações, existe uma necessidade crítica de ver as identidades como algo passível de ser determinado por escolhas em função da relevância de pertencas particulares que são inexerávelmente diversas. Não quer com isso dizer que não existem contrangimentos na escolha, mas esse é outro assunto.
Assassinos de identidades
O segundo livro que estou a reler é de Amin Maalouf, um jornalista e escritor Francês, de origem Libanesa. Escreveu um livrinho que se tornou muito popular intitulado: “Identidades assassinas”. Maalouf, mais ou menos na senda de Sen, procura perceber porque as pessoas cometem crimes em nome da religião, etnia, nacionalidade ou outras formas de identidade. Maalouf questiona-se sobre como as ‘identidades que matam’ são produzidas e sustentadas. No fundo as identidades não são por si só assassinas, mas é o assassino da multiplicidade e fluidez das identidades que gera as identidades assassinas. O que me interessa realçar é que não só existem ‘identidades assassinas’ a la Maalouf como existem os assassinos de identidades. Os assassinos das identidades reduzem-nos a categorias unitárias de pertença. Os assassinos das identidades matam as nossas multiplas pertenças estabelecendo níveis hierárquicos entre elas e atribuindo primordialidade a aquela que eles consideram fundamental. Assim para os assassinos das identidades deixamos de ser, pais, filhos, irmãos, vizinhos, católicos, muçulumanos, estudantes, políticos de diferentes partidos, membros de grupos corais e por ai em diante, sendo algumas destas pertenças as que mais sentido fazem a nossa existência quotidiana, e somos forçados a ser fundamentalmente “os do sul” ou “os não do sul”. Estas últimas não raras vezes só nos ocorrem quando impostas pelos assassinos das nossas multiplas pertenças.
O assassino das identidades é aquele que saí por aí contando quantos no sector publico são do Sul, Centro ou Norte, do Este ou Oeste, do Sudeste ou Nordeste usando critérios duvidosos; aquele que saí por aí identificando quem no sector privado é Machangana, Ronga, Bitonga, Ndau, Sena ou Macua e a partir desse exercício estatístico problemático conclui que há dominação de uns sobre os outros, daqueles sobre estes, sem primeiro estabelecer em que consiste cada uma dessas categorias. Essa pessoa não está a apontar algum problema, ela é que constitui o problema e ainda não se deu conta porque não fez um exercício fundamental de introspenção. Antes de acusar o outro de ser ‘etnico-regionalista’ pergunta te a ti próprio se não existe um te habitando o pensamento. A mentalidade etnico-regionalista pre-existe a etnia e a região. Em suma, um assassino de identidades, portanto, é aquele que por causa da sua mentalidade etnico-regionalista reduz a complexidade das possibilidades de pertença das pessoas a hierarquia e número signicante para criar pares binários de confrontação e satisfazer a sua mentalidade etnico-regionalista.
Identidades multiplas e competitivas
Uma pessoa como, eu, com multiplas percenças, é reduzida ao é “do Sul”, logo dominante!Não sabia que tinha todo esse poder. No entanto, a minha experiência existêncial remete-me para tantas outras colectividades de pertença. As minhas multiplas identidades são simplesmente escamoteadas, assassinadas pela mentalidade etnico-regionalista. A hieraquia dessas colectividades nem sempre coloca o "sul" em primeiro lugar. Sou do sul, talvez, quando alguém me lembra que não sou do norte, mas também sou do centro da província de Gaza e do norte de Maputo. Penso como alguém que estudou em Xai-Xai, Maputo, Brasil, Africa do Sul, Noruega e por aí em diante. As minhas preferências políticas são informadas pela minhas trajectorias, profissão, género, classe, amizades etc. Tenho mais amigos na blogosfera do que aqueles com quem convivo face-a-face. Na infância tinha mais amigos do Xai-Xai, mais primos em Maputo e Inhambane, tios na Beira e Quelimane, paí enfermeiro que fez um terço da carreira em Nampula, Montepuez e Pemba onde nasceu um dos meus irmãos. Já agora, o meu irmão que nasceu em Pemba é do sul ou do norte? A medida que foi crescendo fui tendo menos amigos de Xai-Xai e mais amigos de Moçambique. Hoje tenho mais amigos do mundo do que do meu país.
Desses amigos quase nunca me interessa a sua pertença regional. Fui membro da associação de estudantes de pós-graduação no Cabo, não me recordo de saber qual é a proveniência regional ou nacional dos vários associados. Alguns eram moçambicanos, mas também tinham outras pertenças naquele contexto. Pertenço a diferentes associações de amigos, de música, de praticantes de desporto e de residentes. Enfim, todas essas colectividades informam e formam a minha identidade e nenhuma delas é essencialmente essencial (passe a redundância) estando algumas em permanente competição. Porque devo aceitar que alguém assassine as minhas multiplas pertenças, em nome da ilusão do dominio do sul? Moçambicanos do Rovuma ao Maputo, do Zumbo ao Índico, uni-vos e restistam aos assassinos da nossas multiplas identidades.