Wednesday, October 6, 2010

Vamos combater a credulidade Dos das correlações (8a)

Sociólogo Elísio Macamo convida-nos à combater a credulidade numa série que está a ser publicada pelo Jornal Notícias, e que será aqui reproduzida na íntegra.



Maputo, Quarta-Feira, 6 de Outubro de 2010:: Notícias

VOU ter que discutir o tema das correlações em três textos seguidos. Acho importante fazer isto porque a problemática que vou tratar tem estado, do lado académico, no centro de como abordamos um bom número de fenómenos sociais no nosso país. O tipo de argumento que me interessa, e que pode fomentar a credulidade, consiste em chegar a conclusões a partir da constatação de correlações e partir dessas correlações para uma causa. No fundo, não há nada de errado neste procedimento e, aliás, a responsabilidade pelas conclusões que são tiradas não pertence aos autores, mas sim a nós os leitores que preferimos dá-las por adquirido.

Existe, felizmente, um trabalho científico da autoria do Professor Carlos Serra do Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane com o título Cólera e Catarse, realizado em 2002 na província de Nampula, que, em minha opinião, usa este tipo de argumento. Talvez seja bom dizer de imediato que a minha análise não põe em causa a autoridade científica do autor. Faço este reparo porque quando publiquei este texto pela primeira vez na Internet houve reacções bastante agressivas de gente que ignorou os reparos metodológicos que fiz e preferiu questionar as minhas motivações. Que a crítica por pares faz parte da vida académica passou completamente despercebido a essas pessoas. Sendo o Professor Serra o sociólogo mais produtivo ao nível da pesquisa no país e, ainda mais, debruçando-se sobre fenómenos de grande interesse público – e politicamente relevantes – é importante não só prestar atenção ao que ele diz, mas proporcionar aos interessados instrumentos com os quais eles possam digerir essa produção sem caírem na credulidade como alguns têm, infelizmente, feito.

Vou começar por expor a obra de forma breve e, no artigo a seguir a este, vou tecer comentários à sua volta. O estudo debruça-se sobre os ataques contra agentes de saúde em Nampula perpetrados por populares que acreditavam que estes eram quem causava a cólera. Segundo os autores – a pesquisa foi feita por uma equipa de investigadores – a crença popular (de que a cólera é introduzida pelo governo através do cloro) não é algo irracional como alguns de nós nos sentiríamos inclinados a crer. Ela documenta uma crítica popular ao Estado que não é dialogante, é ineficaz na solução dos problemas do povo, é representado por funcionários alheios aos anseios do povo e tudo isto num ambiente de privações. Na verdade, segundo o estudo a crença pode ser irracional do ponto de vista da explicação científica das causas da cólera, mas perfeitamente coerente com aquilo que os autores do estudo chamam de “consciência de privação”.

De certa forma, portanto, o estudo diz-nos que esta crença é o resultado de um Estado, digamos, problemático contra o qual os populares reagem. Do ponto de vista formal, a estrutura do argumento é simples e consiste de uma premissa apenas. A premissa diz que existe uma correlação entre A (natureza do Estado) e B (crença popular). A conclusão é de que A é a causa de B. A hipótese formulada para o estudo gira em torno deste argumento: “A crença de que a cólera é introduzida pelo governo em Nampula através do cloro (fenómeno) é um indicador de insegurança popular (nível 1) ampliada pela tensão política (nível 2.”. Já na preparação da problemática os investigadores haviam anunciado a intenção de “desnudar o mito da cólera” através da obtenção de “... conhecimento das opiniões dos cidadãos sobre o Estado no concernente à prestação de serviços essenciais como água, saúde e educação”. O estudo confirma o nível 1 (a crença como indicador de insegurança popular), mas não encontra sustento para o nível 2 (a crença é ampliada pela tensão política).

Para este efeito, os investigadores entrevistaram várias pessoas em alguns distritos da província de Nampula. Essas entrevistas produziram depoimentos muito interessantes que, na interpretação dos investigadores, revelam um mal-estar popular em relação ao papel do Estado. Os dados obtidos desta maneira em todos os distritos inquiridos convergem na apreciação negativa do papel do Estado e de algumas ONG’s, por um lado, e na reacção que consiste em atacar os agentes do Estado e das ONG’s como vectores do mal. O estudo critica duramente aqueles entrevistados, na sua maioria representantes do Estado, que atribuem a acção popular ao analfabetismo e à ignorância. Ele tenta mostrar que a crença não tem nada de irracional, mas é uma reacção à indiferença e oportunismo dos agentes do Estado. Os leitores que acompanham a produção do autor principal vão notar que se trata, na essência, do mesmo argumento que é utilizado para explicar os linchamentos e, porque não, distúrbios como os de 5 de Fevereiro e 1 de Setembro: falta de confiança no Estado, logo, reacções populares bizarras encontram a sua lógica no comentário crítico que tecem sobre esse Estado. Amanhã vou prosseguir com uma leitura crítica.

  • E. Macamo - Sociólogo, nosso colaborador