Monday, May 31, 2010

Os desmaios da razão (5): Em cima dos acontecimentos

Os textos que vou passar a publicar nos próximos dias são da autoria do mais criativo e exímio sociólogo que Moçambique alguma vez teve, Elísio Macamo. Os textos estão a ser publicados pelo Jornal Notícias, mas decidi reproduzí-los aqui. Espero que se deliciem-se com as reflexões desta mente brilhante. Pensar é díficil, mas está ao alcance de todos aqueles que com integridade intelectual se entregam a esse exercício. Este exerício, básico, feito pelo Elísio Macamo, nesta série de textos, é, de longe, muito mais instrutivo do que as referências - megalomaniacas, narcisistas e de vaidade – pseudo-teóricas que alguns ciêntistas sociais da nossa praça fazem sobre os ditos “Desmáios de Quisse Mavota”. Publico-os aqui por uma razão didática. Eles representam um excelente exemplo de como se desenvolve o pensamento e senso crítico. São textos que falam por sí e do fénomeno em causa e não de quem os escreveu. Bom proveito.

A PIOR invenção da televisão dos últimos tempos é esta história do “breaking news”, isto é da notícia em tempo real. Muitas pessoas ficam com a sensação de estarem a presenciar a história a acontecer (a CNN tem a mania de dizer este tipo de bobagem) quando na realidade está simplesmente a consumir ruído. Talvez devesse fazer uma pequena confissão como pequena mãozinha ao leitor para decidir se quer continuar a ler ou não: não gosto de noticiários, sobretudo quando se trata de coisas que ainda não chegaram ao fim. Evito noticiários televisivos e (o Notícias que me perdoe!) evito notícias políticas e económicas publicadas em jornais diários. Faço concessões a semanários e mensuários. A razão desta minha aversão é simples: o tempo real dum acontecimento não é o tempo da análise porque quando algo ocorre é acompanhada de muita coisa supérflua que o analista incauto inclui na sua análise.

Estou a tentar proteger os cientistas sociais das investidas dos jornalistas. Os meios de informação de massas têm uma expectativa legítima de obter de cientistas sociais considerações que ajudem o público geral a perceber um determinado fenómeno. Isto não está em questão. Se o cientista social é alguém com conhecimento profundo da matéria, conhecimento esse que é fruto de estudo e pesquisas, então não há nenhum problema em esperar que ele ajude o público a colocar o tipo de perguntas que devem ser colocadas para se perceber o assunto. Quando o cientista social, contudo, não dispõe desse conhecimento e é convidado a comentar em tempo real, o mais provável é que contribua para aumentar a confusão. E muitos têm feito isto. Estar em cima dos acontecimentos não é perceber o fenómeno. É estar em cima dos acontecimentos. Só.

Qual é o problema de estar em cima dos acontecimentos? Um fenómeno social não é algo que ocorre com todos os seus atributos ao mesmo tempo. Na verdade, a própria ideia dum fenómeno social é uma abstracção que fazemos a partir da junção de vários elementos. Essa abstracção é tanto coerente e completa quanto as ocorrências que compõem o fenómeno já se tenham dado. Por exemplo, podemos perguntar o que aconteceu na escola Quisse Mavota. Foram desmaios? É isso que nos interessa perceber? Ou foi outra coisa, por exemplo, crenças bizarras, problemas de saúde, exaustão, fome, conflitos entre escola e comunidade local, etc.? As reportagens que temos tido sobre o assunto não nos permitem ainda dizer exactamente que fenómeno temos em mão. Só podemos conjenturar, ainda por cima com o risco de conduzirmos a discussão e a atenção para coisas que não são relevantes. É só ver a prominência que os chamados “médicos tradicionais” ganharam na interpretação do ocorrido para ver os perigos da concentração no tempo real dum fenómeno.

A análise social precisa de distância temporal para poder seleccionar os elementos que permitam tornar os contornos dum fenómeno claros e coerentes. Por acaso, é por esta razão que a análise social é mais útil na formulação dum problema, mais do que na procura e identificação de soluções. As soluções exigem causas, mas estas são muito escorregadias para as mãos dum cientista social. O investigador só pode tecer probabilidades e com o benefício do olhar retrovisor pode indicar de forma aproximada o tipo de condições que devem estar reunidas para que algo ocorra. Acho importante referir estes aspectos, pois a opinião pública precisa de saber o que um verdadeiro cientista social pode ou não dizer. O investigador que não observa a distância temporal sente a tentação de “explicar” um fenómeno, isto é estabelecendo relações de causalidade, mas fica frustrado porque não pode saber o que é relevante e o que é supérfluo. E como acha que deve dizer alguma coisa, pode chegar a envenenar o ambiente de reflexão.

No caso dos desmaios a preocupação não pode ser de saber o que os causa, pois isso só os médicos-psiquiatras é que podem dizer. A preocupação deve ser de saber em que circunstâncias (de ordem política, económica ou social) há grandes probabilidades de que fenómenos desta natureza ocorram. Mas repito: a resposta a esta inquietação não pode ser encontrada em cima dos acontecimentos. É preciso distância temporal em relação aos eventos.

  • E. Macamo - Sociólogo,
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Saturday, May 29, 2010

Os desmaios da razão (4): “Desmaios”

Os textos que vou passar a publicar nos próximos dias são da autoria do mais criativo e exímio sociólogo que Moçambique alguma vez teve, Elísio Macamo. Os textos estão a ser publicados pelo Jornal Notícias, mas decidi reproduzí-los aqui. Espero que se deliciem-se com as reflexões desta mente brilhante. Pensar é díficil, mas está ao alcance de todos aqueles que com integridade intelectual se entregam a esse exercício. Este exerício, básico, feito pelo Elísio Macamo, nesta série de textos, é, de longe, muito mais instrutivo do que as referências - megalomaniacas, narcisistas e de vaidade – pseudo-teóricas que alguns ciêntistas sociais da nossa praça fazem sobre os ditos “Desmáios de Quisse Mavota”. Publico-os aqui por uma razão didática. Eles representam um excelente exemplo de como se desenvolve o pensamento e senso crítico. São textos que falam por sí e do fénomeno em causa e não de quem os escreveu. Bom proveito.

ATÉ aqui abordei aspectos algo externos ao fenómeno em questão. Lancei impropérios contra várias tendências nocivas, nomeadamente a (i) tendência de reduzir a nossa cultura ao que é bizarro, (ii) a tendência de generalizar com o intuito de apresentar o povo moçambicano como sendo composto por gente parva e, finalmente, (iii) a tendência de tirar conclusões sem nenhuma informação. Escusado será dizer que esses impropérios são um convite ao bom senso na abordagem das coisas da nossa vida. Não é necessária nenhuma formação em ciências sociais para observar regras elementares na abordagem de fenómenos sociais. São regras simples ao alcance de qualquer um de nós. Então, neste texto vou tecer algumas considerações sobre o fenómeno em si porque, afinal, ele é que nos interessa.

O leitor que tem acompanhado o caso dos desmaios vai ter notado, de certeza, algumas observações feitas pela médica psiquiatra Lídia Goveia. Ela integra a equipa oficial encarregue de investigar o assunto. Se não notou não faz mal, é para isso que estou aqui. Ela disse que aqueles desmaios não foram desmaios. Já viu? Não foram desmaios. E porquê? Simples: porque um desmaio, segundo ela, envolve a perca de consciência. E no caso das alunas de Quisse Mavota elas não perderam a consciência, isto é continuaram a ouvir o barulho das pessoas à sua volta, etc. Se estivesse perto dessa senhora dava-lhe dois beijinhos sonoros nas bochecas (se ela deixasse, claro). Esta observação é talvez a única com sentido que se fez ao redor deste caso. As miúdas não desmaiaram. Caíram, ficaram tontas, etc., mas não desmaiaram. Entretanto, toda a inquietação à volta deste assunto – incluindo alguns tratados pseudo-científicos sobre o fenómeno – deram os desmaios por adquirido.

Que serviço é que a médica psiquiatra nos prestou? Ela fez o que cada um de nós deve fazer quando está perante fenómenos sociais. Será que o que aconteceu na realidade corresponde ao que o conceito pressupõe? O que é um desmaio? O que aconteceu naquela escola foi um desmaio? Simples, elementar, mas irritantemente ausente dos comentários especializados. Permito-me uma generalização bruta: há uma tendência vincada entre nós de repetir, sem questionamento, o que a primeira pessoa diz. Esta tendência vai de mãos dadas com uma resistência heróica à definição, condição imprescindível da operacionalização de conceitos, isto é do estabelicimento de regras de correspondência entre conceitos e realidade. Antes de a gente propalar aos quatro ventos o que a “população” pensa sobre o assunto, a gente tem de estabelecer os factos. E os factos aqui não são simplesmente “desmaios”, mas sim se o que aconteceu na escola se enquadra na vasta gama de coisas que podemos chamar de “desmaios”. O cientista social interessar-se-ia, neste caso particular, por saber onde, quando, em que circunstâncias e com que sintomas e manifestações as raparigas procuraram a comunhão com o chão.

Pode ser que, no fundo, o apuramento destas coisas todas não faça muita diferença na conclusão geral de que houve desmaios na escola. Mas a ideia não é essa. A ideia é de nos colocarmos em posição de apreciarmos a diferença e variação no próprio fenómeno. E aqui volto à carga contra algumas tendências nocivas da reflexão analítica entre nós: preocupamo-nos muito pouco com a morfologia das coisas. O crime violento é simplesmente crime violento. Não nos preocupamos em discriminar para conhecermos a percentagem do crime violento que é entre bandidos, entre familiares, entre minorias étnicas, etc.; crime violento que é homicídio voluntário e involuntário, e por aí fora. Gostamos das grandes categorias que suscitam, na opinião pública, o sentimento dum problema bem maior do que é na realidade. Falamos simplesmente de “linchamentos” e não nos preocupamos em discriminar: tipos de linchamento; circunstâncias; contextos; motivações, etc. Contentamo-nos em dizer simplesmente que houve mais um linchamento, o que nos habilita a proclamar a gravidade do assunto. Falamos de acidentes de viação, e idem mesma coisa como dizem alguns machangana. É verdade que já discriminamos um pouco em relação à condução em estado de embriaguez, mau estado de estradas, etc. Contudo, precisamos de discriminar mais: idade dos condutores; hora da ocorrência, experiência de condução, filiação partidária (por que não?), etc.

Só o interesse pela morfologia da coisa é que nos vai colocar em posição de percebermos fenómenos sociais sem esta apetência nociva pela folclorização e conclusões super rápidas.


Friday, May 28, 2010

Os desmaios da razão (3): População II

Os textos que vou passar a publicar nos próximos dias são da autoria do mais criativo e exímio sociólogo que Moçambique alguma vez teve, Elísio Macamo. Os textos estão a ser publicados pelo Jornal Notícias, mas decidi reproduzí-los aqui. Espero que se deliciem-se com as reflexões desta mente brilhante. Pensar é díficil, mas está ao alcance de todos aqueles que com integridade intelectual se entregam a esse exercício. Este exerício, básico, feito pelo Elísio Macamo, nesta série de textos, é, de longe, muito mais instrutivo do que as referências - megalomaniacas, narcisistas e de vaidade – pseudo-teóricas que alguns ciêntistas sociais da nossa praça fazem sobre os ditos “Desmáios de Quisse Mavota”. Publico-os aqui por uma razão didática. Eles representam um excelente exemplo de como se desenvolve o pensamento e senso crítico. São textos que falam por sí e do fénomeno em causa e não de quem os escreveu. Bom proveito.

AINDA não terminei com a “população”. Só que desta feita não é a população no sentido do substantivo colectivo que me interessa. É, sim, a população no sentido mais restrito da pesquisa empírica social. É assim, quando a gente faz pesquisa empírica social está interessada em dizer coisas sobre o que determinado grupo de pessoas crê, faz ou prefere. Portanto, há um sentido bastante restrito em que a noção de população é usada em ciências sociais. Esse sentido é técnico e quantitativo. Se quero saber, por exemplo, o que pensam os habitantes de Maputo sobre o lixo, a população é, neste caso, o total de pessoas residentes em Maputo e que eu posso legitimamente considerar como fonte de informação. Por enquanto não são as características sociais ou económicas que interessam, mas sim o facto de a pessoa satisfazer a condição (formal) de ser habitante de Maputo.

O problema na pesquisa é que as pessoas que eu posso potencialmente entrevistar para apurar determinada coisa são numerosas e, consequentemente, humanamente difíceis de entrevistar por completo. A estatística veio ao nosso socorro para nos ajudar a tirar amostras, isto é, um número bastante mais reduzido de pessoas que nós julgamos ser representativas dessa população. As pessoas que compõem esta amostra (reduzida) são aquilo que os pesquisadores chamam de unidade elementar (ou também unidade de análise). Como parto do princípio segundo o qual estas pessoas reuniriam características representativas da população (atenção: no sentido de número total das pessoas que nos interessam) posso também arriscar o pressuposto de que o que cada uma destas pessoas me disser vai corresponder de alguma forma ao que poderia ser traduzido por opinião dos habitantes de Maputo em relação ao lixo. Não obstante, é preciso prestar atenção a um aspecto muito importante: as pessoas que tomo como unidade elementar da minha pesquisa são portadoras de características bem específicas. Por exemplo, são homens, mulheres, crianças, velhos, baixo rendimento, formação universitária, membros do MDM, comerciantes de origem indiana, mendigos, jornalistas, etc.

O desafio de interpretação em pesquisa consiste em estabelecer relações entre estas características e seja lá o que for que eu estiver a pesquisar. Por exemplo, posso constatar que um número significativo de pessoas que se revelaram a favor da promoção do lixo como forma de vincar a nossa identidade cultural é portadora da característica de estudante de ciências sociais numa universidade da nossa praça académica. Espero que o leitor esteja a acompanhar o raciocínio. Há muita coisa que estou a simplificar por uma questão de economia de espaço. Espero, contudo, não estar a criar a impressão de que se pesquisa é isto, então não faz sentido ficar tanto tempo na universidade. Na verdade, o assunto é bem mais complexo. Não obstante, para os meus efeitos imediatos penso que teríamos aqui subsídios suficientes para perceber uma e outra coisa em relação ao caso dos desmaios.

O que é que sabemos sobre esse caso? Os jornalistas disseram-nos apenas que alunos – na sua maioria, raparigas – desmaiaram. Cada um dos alunos que desmaiou é a nossa unidade elementar; a população é composta pelo número total dos alunos dessa escola. Vamos supor que estamos a fazer uma pesquisa e queremos perceber esses desmaios na escola Quisse Mavota. Em que sentido é que os alunos que desmaiaram constituiriam uma amostra da população dessa escola? Do ponto de vista quantitativo o número é bastante reduzido para ser de grande importância – por mais insólito que seja o caso. De qualquer maneira, é evidente que a nossa pesquisa só pode ir à frente se procurarmos saber mais sobre as características de que cada uma dessas crianças é portadora. Para além das características óbvias como idade e sexo, talvez fosse importante saber algo sobre o perfil social e cultural das suas famílias de origem, hábitos alimentares, redes sociais, tendências religiosas, etc. Ou por outra, o que quero dizer é que há muita coisa que não sabemos sobre a nossa unidade elementar (e possivelmente também sobre a nossa população) de modo que qualquer comentário neste momento da pesquisa seria simplesmente irresponsável. Quando um cientista social diz, indagado por um jornalista, “não sei”, refere-se a esta lacuna na informação. Convidado a comentar o fenómeno ele (ou ela) não devia se lançar em especulações sobre as várias formas que existem de explicar o fenómeno, mas sim chamar a atenção da esfera pública para a necessidade de sabermos mais sobre o perfil da nossa unidade elementar. E o jornalista inteligente devia concentrar a sua atenção nesse tipo de informação, o que não quer dizer, obviamente, que seja da sua responsabilidade investigar. Ele só cumprirá o seu dever de informar o público concentrando a sua atenção na informação que nos faz falta.

  • E. Macamo, sociólogo
  • Leia os textos anteriores desta série aqui e aqui .