Os textos que vou passar a publicar nos próximos dias são da autoria do mais criativo e exímio sociólogo que Moçambique alguma vez teve, Elísio Macamo. Os textos estão a ser publicados pelo Jornal Notícias, mas decidi reproduzí-los aqui. Espero que se deliciem-se com as reflexões desta mente brilhante. Pensar é díficil, mas está ao alcance de todos aqueles que com integridade intelectual se entregam a esse exercício. Este exerício, básico, feito pelo Elísio Macamo, nesta série de textos, é, de longe, muito mais instrutivo do que as referências - megalomaniacas, narcisistas e de vaidade – pseudo-teóricas que alguns ciêntistas sociais da nossa praça fazem sobre os ditos “Desmáios de Quisse Mavota”. Publico-os aqui por uma razão didática. Eles representam um excelente exemplo de como se desenvolve o pensamento e senso crítico. São textos que falam por sí e do fénomeno em causa e não de quem os escreveu. Bom proveito.
A PIOR invenção da televisão dos últimos tempos é esta história do “breaking news”, isto é da notícia em tempo real. Muitas pessoas ficam com a sensação de estarem a presenciar a história a acontecer (a CNN tem a mania de dizer este tipo de bobagem) quando na realidade está simplesmente a consumir ruído. Talvez devesse fazer uma pequena confissão como pequena mãozinha ao leitor para decidir se quer continuar a ler ou não: não gosto de noticiários, sobretudo quando se trata de coisas que ainda não chegaram ao fim. Evito noticiários televisivos e (o Notícias que me perdoe!) evito notícias políticas e económicas publicadas em jornais diários. Faço concessões a semanários e mensuários. A razão desta minha aversão é simples: o tempo real dum acontecimento não é o tempo da análise porque quando algo ocorre é acompanhada de muita coisa supérflua que o analista incauto inclui na sua análise.
Estou a tentar proteger os cientistas sociais das investidas dos jornalistas. Os meios de informação de massas têm uma expectativa legítima de obter de cientistas sociais considerações que ajudem o público geral a perceber um determinado fenómeno. Isto não está em questão. Se o cientista social é alguém com conhecimento profundo da matéria, conhecimento esse que é fruto de estudo e pesquisas, então não há nenhum problema em esperar que ele ajude o público a colocar o tipo de perguntas que devem ser colocadas para se perceber o assunto. Quando o cientista social, contudo, não dispõe desse conhecimento e é convidado a comentar em tempo real, o mais provável é que contribua para aumentar a confusão. E muitos têm feito isto. Estar em cima dos acontecimentos não é perceber o fenómeno. É estar em cima dos acontecimentos. Só.
Qual é o problema de estar em cima dos acontecimentos? Um fenómeno social não é algo que ocorre com todos os seus atributos ao mesmo tempo. Na verdade, a própria ideia dum fenómeno social é uma abstracção que fazemos a partir da junção de vários elementos. Essa abstracção é tanto coerente e completa quanto as ocorrências que compõem o fenómeno já se tenham dado. Por exemplo, podemos perguntar o que aconteceu na escola Quisse Mavota. Foram desmaios? É isso que nos interessa perceber? Ou foi outra coisa, por exemplo, crenças bizarras, problemas de saúde, exaustão, fome, conflitos entre escola e comunidade local, etc.? As reportagens que temos tido sobre o assunto não nos permitem ainda dizer exactamente que fenómeno temos em mão. Só podemos conjenturar, ainda por cima com o risco de conduzirmos a discussão e a atenção para coisas que não são relevantes. É só ver a prominência que os chamados “médicos tradicionais” ganharam na interpretação do ocorrido para ver os perigos da concentração no tempo real dum fenómeno.
A análise social precisa de distância temporal para poder seleccionar os elementos que permitam tornar os contornos dum fenómeno claros e coerentes. Por acaso, é por esta razão que a análise social é mais útil na formulação dum problema, mais do que na procura e identificação de soluções. As soluções exigem causas, mas estas são muito escorregadias para as mãos dum cientista social. O investigador só pode tecer probabilidades e com o benefício do olhar retrovisor pode indicar de forma aproximada o tipo de condições que devem estar reunidas para que algo ocorra. Acho importante referir estes aspectos, pois a opinião pública precisa de saber o que um verdadeiro cientista social pode ou não dizer. O investigador que não observa a distância temporal sente a tentação de “explicar” um fenómeno, isto é estabelecendo relações de causalidade, mas fica frustrado porque não pode saber o que é relevante e o que é supérfluo. E como acha que deve dizer alguma coisa, pode chegar a envenenar o ambiente de reflexão.
No caso dos desmaios a preocupação não pode ser de saber o que os causa, pois isso só os médicos-psiquiatras é que podem dizer. A preocupação deve ser de saber em que circunstâncias (de ordem política, económica ou social) há grandes probabilidades de que fenómenos desta natureza ocorram. Mas repito: a resposta a esta inquietação não pode ser encontrada em cima dos acontecimentos. É preciso distância temporal em relação aos eventos.