Friday, May 28, 2010

Os desmaios da razão (3): População II

Os textos que vou passar a publicar nos próximos dias são da autoria do mais criativo e exímio sociólogo que Moçambique alguma vez teve, Elísio Macamo. Os textos estão a ser publicados pelo Jornal Notícias, mas decidi reproduzí-los aqui. Espero que se deliciem-se com as reflexões desta mente brilhante. Pensar é díficil, mas está ao alcance de todos aqueles que com integridade intelectual se entregam a esse exercício. Este exerício, básico, feito pelo Elísio Macamo, nesta série de textos, é, de longe, muito mais instrutivo do que as referências - megalomaniacas, narcisistas e de vaidade – pseudo-teóricas que alguns ciêntistas sociais da nossa praça fazem sobre os ditos “Desmáios de Quisse Mavota”. Publico-os aqui por uma razão didática. Eles representam um excelente exemplo de como se desenvolve o pensamento e senso crítico. São textos que falam por sí e do fénomeno em causa e não de quem os escreveu. Bom proveito.

AINDA não terminei com a “população”. Só que desta feita não é a população no sentido do substantivo colectivo que me interessa. É, sim, a população no sentido mais restrito da pesquisa empírica social. É assim, quando a gente faz pesquisa empírica social está interessada em dizer coisas sobre o que determinado grupo de pessoas crê, faz ou prefere. Portanto, há um sentido bastante restrito em que a noção de população é usada em ciências sociais. Esse sentido é técnico e quantitativo. Se quero saber, por exemplo, o que pensam os habitantes de Maputo sobre o lixo, a população é, neste caso, o total de pessoas residentes em Maputo e que eu posso legitimamente considerar como fonte de informação. Por enquanto não são as características sociais ou económicas que interessam, mas sim o facto de a pessoa satisfazer a condição (formal) de ser habitante de Maputo.

O problema na pesquisa é que as pessoas que eu posso potencialmente entrevistar para apurar determinada coisa são numerosas e, consequentemente, humanamente difíceis de entrevistar por completo. A estatística veio ao nosso socorro para nos ajudar a tirar amostras, isto é, um número bastante mais reduzido de pessoas que nós julgamos ser representativas dessa população. As pessoas que compõem esta amostra (reduzida) são aquilo que os pesquisadores chamam de unidade elementar (ou também unidade de análise). Como parto do princípio segundo o qual estas pessoas reuniriam características representativas da população (atenção: no sentido de número total das pessoas que nos interessam) posso também arriscar o pressuposto de que o que cada uma destas pessoas me disser vai corresponder de alguma forma ao que poderia ser traduzido por opinião dos habitantes de Maputo em relação ao lixo. Não obstante, é preciso prestar atenção a um aspecto muito importante: as pessoas que tomo como unidade elementar da minha pesquisa são portadoras de características bem específicas. Por exemplo, são homens, mulheres, crianças, velhos, baixo rendimento, formação universitária, membros do MDM, comerciantes de origem indiana, mendigos, jornalistas, etc.

O desafio de interpretação em pesquisa consiste em estabelecer relações entre estas características e seja lá o que for que eu estiver a pesquisar. Por exemplo, posso constatar que um número significativo de pessoas que se revelaram a favor da promoção do lixo como forma de vincar a nossa identidade cultural é portadora da característica de estudante de ciências sociais numa universidade da nossa praça académica. Espero que o leitor esteja a acompanhar o raciocínio. Há muita coisa que estou a simplificar por uma questão de economia de espaço. Espero, contudo, não estar a criar a impressão de que se pesquisa é isto, então não faz sentido ficar tanto tempo na universidade. Na verdade, o assunto é bem mais complexo. Não obstante, para os meus efeitos imediatos penso que teríamos aqui subsídios suficientes para perceber uma e outra coisa em relação ao caso dos desmaios.

O que é que sabemos sobre esse caso? Os jornalistas disseram-nos apenas que alunos – na sua maioria, raparigas – desmaiaram. Cada um dos alunos que desmaiou é a nossa unidade elementar; a população é composta pelo número total dos alunos dessa escola. Vamos supor que estamos a fazer uma pesquisa e queremos perceber esses desmaios na escola Quisse Mavota. Em que sentido é que os alunos que desmaiaram constituiriam uma amostra da população dessa escola? Do ponto de vista quantitativo o número é bastante reduzido para ser de grande importância – por mais insólito que seja o caso. De qualquer maneira, é evidente que a nossa pesquisa só pode ir à frente se procurarmos saber mais sobre as características de que cada uma dessas crianças é portadora. Para além das características óbvias como idade e sexo, talvez fosse importante saber algo sobre o perfil social e cultural das suas famílias de origem, hábitos alimentares, redes sociais, tendências religiosas, etc. Ou por outra, o que quero dizer é que há muita coisa que não sabemos sobre a nossa unidade elementar (e possivelmente também sobre a nossa população) de modo que qualquer comentário neste momento da pesquisa seria simplesmente irresponsável. Quando um cientista social diz, indagado por um jornalista, “não sei”, refere-se a esta lacuna na informação. Convidado a comentar o fenómeno ele (ou ela) não devia se lançar em especulações sobre as várias formas que existem de explicar o fenómeno, mas sim chamar a atenção da esfera pública para a necessidade de sabermos mais sobre o perfil da nossa unidade elementar. E o jornalista inteligente devia concentrar a sua atenção nesse tipo de informação, o que não quer dizer, obviamente, que seja da sua responsabilidade investigar. Ele só cumprirá o seu dever de informar o público concentrando a sua atenção na informação que nos faz falta.

  • E. Macamo, sociólogo
  • Leia os textos anteriores desta série aqui e aqui .

2 comments:

oakleyses said...

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oakleyses said...

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