Thursday, May 27, 2010

Os desmaios da razão (2): População I

Os textos que vou passar a publicar nos próximos dias são da autoria do mais criativo e exímio sociólogo que Moçambique alguma vez teve, Elísio Macamo. Os textos estão a ser publicados pelo Jornal Notícias, mas decidi reproduzí-los aqui. Espero que se deliciem-se com as reflexões desta mente brilhante. Pensar é díficil, mas está ao alcance de todos aqueles que com integridade intelectual se entregam a esse exercício. Este exerício, básico, feito pelo Elísio Macamo, nesta série de textos, é, de longe, muito mais instrutivo do que as referências - megalomaniacas, narcisistas e de vaidade – pseudo-teóricas que alguns ciêntistas sociais da nossa praça fazem sobre os ditos “Desmáios de Quisse Mavota”. Publico-os aqui por uma razão didática. Eles representam um excelente exemplo de como se desenvolve o pensamento e senso crítico. São textos que falam por sí e do fénomeno em causa e não de quem os escreveu. Bom proveito.

VAMOS começar pelo mais básico. Os vários jornalistas que noticiaram o fenómeno dos desmaios deram destaque àquilo que chamaram de “opinião popular”, mais concretamente a opinião da “população local”. Disseram que a população explicava o fenómeno dos desmaios com recurso à crença local segundo a qual os espíritos do clã local estariam revoltados pelo facto de não terem sido consultados quando se construiu a escola. É aqui onde começam os problemas analíticos. Na verdade, população, em ciências sociais, é coisa que não existe. Repito: em ciências sociais não existe nada parecido com população. Existem indivíduos com características mais ou menos bem definidas e que, agregadas, podem dar grupos distintos com formas idênticas de pensar e agir. Portanto, o erro mais grave cometido pelas pessoas que noticiaram o assunto foi de dizer que a “população local” tem esta ou aquela opinião. Deram-nos informação falsa e sem valor de ... informação. Já vou explicar isto, mas antes quero abrir um parêntesis para contar algo semelhante a esta história dos desmaios e que me parece instructivo.

Estava eu a fazer as minhas pesquisas na periferia da cidade do Xai-Xai – em 2004/05 – quando acompanhando uma brigada de técnicos da Empresa de Águas presenciei um diálogo interessante entre os técnicos e os membros duma comissão local de administração e manutenção dum fontanário. A Empresa de Águas é que tinha construído o fontanário há alguns meses e tinha tido o cuidado de formar alguém para fazer a manutenção. Algum tempo após a entrada em funcionamento do fontanário deixou de sair água. Consequentemente, o fontanário ficou vários meses inoperacional para grande incómodo dos moradores da área que tiveram de percorrer longas distâncias para se abastecerem de água. Os membros da comissão explicaram aos técnicos das Águas – ao jeito de alguns jornalistas e cientistas sociais – que a população dizia que o fontanário não funcionava porque um espírito local estava zangado por não ter sido consultado na altura da instalação. Os técnicos – que aparentemente não são população – perguntaram se a comissão havia feito a manutenção conforme recomendado, ao que estes responderam afirmativamente. Essa manifestação consistia em limpar o filtro que chupava a água do poço. Os técnicos retiraram o filtro para verificarem e constataram que este tinha sido colocado ao contrário após a limpeza. Resultado: só puxava areia. Recolocaram-no e a água jorrou límpida e fresquinha.

Qual é o problema da “população” em ciências sociais? Simples. O problema da população é que é um substantivo colectivo que não diferencia. O que interessa numa situação como a dos desmaios não é a opinião da “população”, mas sim o perfil das pessoas que emitem opinião. O facto de duas ou três pessoas entrevistadas pelo jornalista dizerem uma coisa não implica que essa seja a opinião da população. E mesmo se a maioria dos habitantes desse bairro tivesse emitido essa opinião seria ainda necessário conhecer o seu perfil. Vamos supor que 200 pessoas dum total de 300 moradores tivesse emitido essa opinião e que, ao analisarmos de perto o seu perfil, constatássemos tratar-se de gente com uma forte disposição para acreditar em coisas bizarras ou, porquê não, gente envolvida numa disputa qualquer de terrenos com os serviços de educação. Iríamos ainda simplesmente dizer que a “população” disse...? Naquele bairro vivem pessoas com uma variedade de perfis – religiosos, estudantes, académicos, profissionais, etc. Fazem todos parte da categoria “população”?

O que se torna evidente nesta forma descuidada de produzir informação é uma tendência bastante nociva de o por uma categoria amorfa com o nome colectivo de “população” a uma minoria pensante confortavelmente instalada naquilo que pensa ser um mundo moderno. À “população” ficam reservadas crenças bizarras que nos reconfortam na nossa ideia de que, enquanto não-membros da “população”, somos gente especial. Algumas pessoas – sobretudo estrangeiros – estão a construir as suas carreiras académicas na base da capacidade de interpretar os sentimentos mais profundos da “população”, promovendo com afinco a ideia de crenças tradicionais que dão substância à nossa cultura. Jornalistas responsáveis deviam se acautelar. E uma boa maneira de se acautelarem consiste em prescindir voluntariamente de substantivos colectivos ocos. É mentira que a população local disse que os desmaios são causados pelos espíritos do clã local. Houve, isso sim, pessoas que podem ser identificadas, que disseram isso. Faríamos bem ao debate público se atribuíssimos essa opinião a essas pessoas.

  • Elísio Macamo - Sociólogo
  • Leia o texto anterior aqui

2 comments:

oakleyses said...

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