Tuesday, June 1, 2010

Os desmaios da razão (6): Responsabilidade jornalística

Os textos que vou passar a publicar nos próximos dias são da autoria do mais criativo e exímio sociólogo que Moçambique alguma vez teve, Elísio Macamo. Os textos estão a ser publicados pelo Jornal Notícias, mas decidi reproduzí-los aqui. Espero que se deliciem-se com as reflexões desta mente brilhante. Pensar é díficil, mas está ao alcance de todos aqueles que com integridade intelectual se entregam a esse exercício. Este exerício, básico, feito pelo Elísio Macamo, nesta série de textos, é, de longe, muito mais instrutivo do que as referências - megalomaniacas, narcisistas e de vaidade – pseudo-teóricas que alguns ciêntistas sociais da nossa praça fazem sobre os ditos “Desmáios de Quisse Mavota”. Publico-os aqui por uma razão didática. Eles representam um excelente exemplo de como se desenvolve o pensamento e senso crítico. São textos que falam por sí e do fénomeno em causa e não de quem os escreveu. Bom proveito.

ESCREVI no primeiro artigo desta série que me dirijo sobretudo aos jornalistas. Estes profissionais têm uma das mais ingratas missões no nosso país. Sobre eles recai a grande responsabilidade de educar a esfera pública através da promoção duma cultura crítica e sã de debate. Ao mesmo tempo, porém, eles estão sujeitos às leis dos mercados, o que significa na prática que o motivo do lucro nunca pode ser deixado de lado. É doloroso, por exemplo, percorrer os anúncios classificados dos principais jornais do país e constatar que eles têm de publicar coisas que ofendem de forma violenta o nosso direito à razão. Acresce-se à necessidade de sobrevivência material o problema da formação dos próprios profissionais. É verdade que em termos de formação dos jornalistas houve nos últimos 25 anos grandes avanços. Não obstante, a quantidade qualitativa é ainda demasiado pequena para se fazer sentir na qualidade geral de intervenção dos profissionais do sector.

Não admira, pois, que a forma de tratar certos assuntos seja por vezes bastante nociva à saúde do debate nacional. Para além do problema ainda fortemente presente de cronistas com esquemas analíticos inflexíveis e nunca reciclados pela formação académica dirigida, temos este grande problema de repórteres que não parecem ter consciência da grande responsabilidade que a produção de informação é e, pior ainda, que não fazem ideia de como podem se servir da massa científica social – que entretanto já existe entre nós – para prestarem melhor serviço ao público. Muitos continuam a operar com esquemas de produção de informação que revelam lacunas na sua formação crítica, mais do que problemas de domínio do seu ofício.

Alguns problemas políticos bicudos que de vez em quando temos tido no país devem-se por vezes a estas insuficiências jornalísticas. A título de exemplo posso referir o problema que o líder da oposição se tornou para a esfera política, problema esse grandemente ligado à corte que lhe foi feita por alguns jornalistas com a sua insistência em apresentá-lo como grande militar. Para que ninguém me acuse de estar com inveja dos seus feitos militares acrescento desde já que o que me preocupa – e sempre me preocupou nessa questão – foi e é a nossa incapacidade analítica de colocar os seus feitos militares no contexto geral em que ocorreram, isto é tendo em conta a (fraca) qualidade do seu adversário. A insistência nisto levou a que ele, humano que é, começasse a acreditar ser detentor dessas qualidades e, por um processo longo de encadeamento, se tornasse impenetrável ao conselho de outros mais abalizados noutros assuntos.

Pesa igualmente sobre os cientistas sociais a responsabilidade de colaborar com os jornalistas no fomento duma atitude mais crítica na abordagem dos assuntos da nossa terra. O maior recurso que o cientista social tem ao seu dispor nessa tarefa não é a resposta na ponta da língua para a interpelação jornalística. O seu maior recurso é a possibilidade que tem de dizer, sem vergonha, que não sabe. Mas quando um cientista social diz não saber alguma coisa não está simplesmente a demonstrar humildade – cá entre nós: nenhum cientista social é humilde, começando por mim mesmo! Quando ele diz que não sabe não se está a render aos fenómenos. Não saber significa saber fazer o tipo de perguntas que são necessárias para que se comece a perceber um fenómeno. Não sei, por exemplo, o que está a acontecer na “Quisse Mavota”. Sei, contudo, que preciso de perguntar se a queda das alunas pode ser descrita como desmaio; sei que preciso de saber mais sobre o perfil individual de cada uma das alunas com esses assomos; preciso de saber que elementos são fundamentais para ter uma ideia clara do fenómeno que as pessoas querem saber.

Ganhar o hábito de colocar este tipo de perguntas bem como encorajar outros a ganharem esse hábito é fazer jornalismo responsável e de qualidade. Precisamos de encorajar a atitude crítica na nossa sociedade. Essa atitude passa, sobretudo, por incutir no maior número possível de pessoas a ideia de que é menos grave não perceber uma coisa do que percebê-la mal. Quem cultiva o sentido crítico pode viver à vontade sabendo que não tem explicação para um fenómeno. Quem se recusa a cultivar esse sentido crítico precisa do conforto das explicações e torna-se, por via disso, bastante vulnerável a charlatães.

  • E. Macamo – Sociólogo
  • Siga esta série aqui: 1, 2, 3, 4, 5

8 comments:

jpt said...

Langa, contrariando uma já longa prática de não opinar sobre o local permiti-me meter um relativo desacordo contigo, com Macamo e com Serra sobre estes "acontecimentos" lá meu blog. cumprimentos

Patricio Langa said...

Oi. JPT,
Obrigado, por passares por aqui.
Vou la ver.No entanto, nao acho que eu, macamo e Serra partilhamos a mesma leitura e visao sobre o assunto.
Abracos

Pepe444 said...

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jpt said...

Não, eu não acho que partilhem. Mas discordo um pouco das múltiplas visões.

Patricio Langa said...

Mais justo, JPT. Já passei pelo seu blog.
“É aliás Langa que me provoca esta superficial entrada… E é importante referir isso, mesmo a esta modesta escala é necessário recordar (em particular a Patrício Langa, resmungando contra a vertigem opinativa) que os especialistas foram convocados e que se lhes torna difícil o silêncio”.

Caro JPT. Não vejo em nenhuma parte da minha breve introdução aos textos do E.M algum ataque a opinião. Mas ainda que o tenha feito sem me aperceber, para mim, a opinião não pensa. Por isso é que é opinião.

Disponibilize-a quem achar dispor de uma. O intelectual integro, no entanto, saberia dizer: ”Não sei”! ”Não tenho opinião formulada”. Portanto, ainda não pensei sobre o assunto.

Não há nada de errado nisso. Ninguém é obrigado a ter opinião sobre tudo. ”Ainda não me dei ao tempo de obter mínima informação para fazer qualquer juízo sobre o assunto”. Pode-se até avançar possíveis questões, mas nunca desfilar pseudo-teorias sobre algo que se desconhece.

Finalmente, acho que os desmaios vão para além da razões disciplinares. Os desmaios da razão antecedem aos das culturas academicas e disciplinares.
Abraços

jpt said...

como poderás depreender do meu desprendido texto concordo completamente contigo. Perguntam-me o que acho? Respondo (mas respondo, ou seja opino [se é opinião avalizada ou abalisada não serei juiz em causa própria]): a) não sei; b) há que ir ver (investigar); c) há que parar para reflectir. Nesse sentido concordo contigo.

Quanto à tua introdução refiro-me ao texto a azul que acompanha os textos de Macamo que em boa hora aqui reproduziste.

Quanto às razões disciplinares eu também concordo. Acho-as muito desmaiadas, quanto mais explicativas dos desmaios alheios. O que ali quis referir foi um, recorrente (perdoe-se-me a invectiva) desvalorizar das abordagens antropológicas por parte de "razões disciplinares" alheias. Que são fruto de uma vulgarização do melhor do que a antropologia tem dito ou inquirido sobre o país

até breve

Patricio Langa said...

Caro JPT.
Penso que estamos em sintonia. Sobre as “guerras” disciplinares prefiro debater noutro fórum. Talvez referir apenas que na pesquisa que conduzi , aquando do doutoramento, tratei a Sociologia e a Antropologia como campos disciplinares que partilham uma certa identidade espistemológica (inspirado por Marshall Sahlins). Isso não exclui, no entanto, diferenças na tradição, prática, malentendidos e percepções que as duas comunidades de prática possam ter/sustentado. Finalmente, acho que precisas acertar as contas é com o E.M.
Abraços

jpt said...

Não tenho contas a ajustar com o EM ... nem com o CS ... nem tampouco contigo [quando citas e concordas é óbvio que concordas, e também o caso oposto] Concordo contigo que as diferenças disciplinares são acima de tudo de tradições ("comunidades") diversas [algo que não é apenas uma herança histórica, mas também - e isso nota-se também em Moçambique - um debate económico-político actual para acesso a recursos, materiais e simbólicos]. O que me ocorre é que as leituras sobre o "caso dos desmaios" se manipulou, explícita ou implicitamente, uma concepção de antropologia e/ou de olhar antropológico que carrega uma incompreensão desta, tanto dos três autores que refiro (tu também, via aplauso) como do "tradicionalismo" imediato mediático e administrativo que surgiu.

até breve