Friday, May 16, 2008

Do ponto de vista sociológico![1]

É possível falar de lugar nenhum?

Não há ponto de vista sociólogico fora de ti! Ora, não há sociologia ou ponto de vista sociológico fora de ti. Os sentidos são teus, tua é a cultura que tens, teu é o grau social que possuis, tua a nacionalidade que te identifica no mundo, teu é o prisma pelo qual encaras ou queres encarar a vida. És tu (e apenas tu - terrível axioma!) quem pode fazer sociologia”(Carlos Serra).

Existe um ditado popular que diz que se conselho fosse bom não se dava vendia-se. Se pensarmos nas vezes em que podemos evitar cometer erros por que alguém nos aconselhara desvalorizavamos este provérbio sem dúvidas. Na verdade, penso que a intenção por detrás da ideia é sugerir a cautê-la nos conselhos que resolvemos acatar. Conselhos, sim, mas em última instância a experiência vivida é intrasmissível. Os danos ou benefícios da adopção ou não recaem, em primeiro lugar, sobre o aconselhado. Ninguém pode experimentar pelo outro. Bom, tudo isto vem a propósito de uma ideia interessante do professor Carlos Serra de fornecer alguns conselhos aos candidatos a sociólogia. Já, agora, um dos conselhos que sempre deixo aos meus estudantes de sociologia é que nunca deixem de visitar e lêr, pelo menos , dois blogs: O diário de um sociólogo e o ideias críticas. Faz parte do processo de aquisição do “ponto de vista sociólogico”, orgulhosamente produzido por Moçambicanos. É por causa da responsabilidade que sinto em relação a esse conselho que escrevo este texto.


Sensação, representação e conceitos!

A sugestão de que não existe ponto de vista fora do indivíduo, e por isso não existe ponto de vista sociológico fora do indíviduo é falaciosa. É falaciosa porque utiliza o/a termo/expressão “ponto de vista” em dois sentidos distintos mas atribuindo-lhe um único sentido. O primeiro sentido de ponto de vista é geral. O segundo é particular. A falácia consiste em tomar o geral por particular. Por outras palavras, há uma sobreposição da noção de ponto de vista sobre a do ponto de vista sociológico. O ponto de vista pode até se referir a influência das determinates sociais – (raça, região, classe, status etc) nas sensações (nível1) (sentidos individuais instramissíveis), representações/ percepções (nível 2) ( sentidos colectivos, senso comum) e nos conceitos (nível 3) (instrumentos analíticos de apreensão e descrição da realidade) – mas nunca negar a sua existência fora do indivíduo. As representações sociais e os conceitos representam esse nível externo a experiência indivídual. Nesses dois níveis, principalmente no terceiro nível, situa-se o ponto de vista sociológico.

O facto de o ‘ponto de vista’ implicar os sentidos, portanto, ser o indivíduo quem vê, ouve e sente não significa que não pode incorporar categorias analíticas externas a si, isto é, que não foram inventadas por si e que por isso não dependem apenas dos seus sentidos. Não se faz sociologia com sensação, mas com conceitos. Os conceitos e a relação entre conceitos que produzem enunciados (teórias) que por seu turno procuram dar conta da realidade, ou que se produzem nesse processo, não são resultado apenas das nossas sensações individuais. O ponto de vista sociológico reflecte uma tentativa de superação dos primeiros dois níveis na produção de conhecimento. Uma disciplina, que se quer científica, como é o caso da sociologia, têm hoje um acervo de conceitos (que produziram um estoque considerável de conhecimento) que está disponível para quem estiver interessado em apreender e incorporá-los como suas categórias analíticas. O facto de poder fazer isso com os seus sentidos não da direito de propriedade ou autoria sobre esses conceitos, teorias e conhecimentos.

Peguemos num exemplo, o conceito de classe social. Ninguém vê, ouve ou sente (nível 1) uma classe classe. Aprende-se a olhar (ponto de vista) para certas caracteristicas/manifestações da realidade social e classificá-la de classe social. É por isso que temos um professor de sociologia, e se vai a universidade aprender a olhar sociologicamente (podia até ser noutro lugar). O conceito de classe social faz parte de um sistema analítico para a apreensão e descrição hermenéutica da realidade, pertence a quadros téoricos específicos que nos permitem determinados tipos de linguagem de descrição da realidade e não outros. Quando digo classe social, do ponto de vista Marxista, estou a apropria-me dessa linguagem de apreensão e descrição hermenéutica da realidade que não depende apenas dos meus sentidos e nem fui eu quem inventou. Se digo classe social no sentido Weberiano idem, mudei porém de perspectiva sociológica. Se consideramos, então, o acervo histórico acomulado de conceitos, teórias (relação entre conceitos) e paradígmas (quadros teóricos) que constituem o corpus do conhecimento sociológico produzido até hoje não nos podemos dar a arrogância de dizer que não existe ponto de vista sociológico fora de nós. Existe sim!

O conselho, portanto, aos candidatos a sociólogos não se pode limitar a dizer que “não existe ponto de vista sociológico fora de ti”. É falso. Cada individuo pode até ser/ter um locus de enunciação- ningúem fala de lugar nenhum -, e uma experiência existêncial única, mas os conceitos que usa não refletem apenas o seu locus de enunciação e a sua experiência existêncial única. Quem fizer isso talvez esteja a fazer poésia, mas não sociologia. Por isso, não se pode considerar que a única obrigação é ter consciência dos determinates sociais (sociológicos) do tipo classe, raça, gênero (sexo), região, etc e emancipar-se deles. Já agora, o que significa emancipar-se dessas determinates? Faz parte da obrigação deontológica e metodológica de quem quer ser sociólogo reconhecer que parte da linguagem para a apreensão e descrição hermenéutica da realidade que seus sentidos lhe permitem captar não é, necessáriamente, sua invenção. Podemos criticar o uso inflacionário do termo “ponto de vista sociológico”. Podemos até críticar o uso da expressão como forma de dar autoridade e legitimar ideias que de sociológico não têm senão a enunciação da expressão, mas não podemos “deitar fora a água suja com o bebé”. Negar que existe “ponto de vista sociológico” é dizer que cada um inventa sua sociologia. Todavia, a sociologia já foi inventada.


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