Tuesday, November 11, 2008

Honoris causa e o espírito académico [3].

Hoje consegui vagar, que já terminou, para prosseguir com esta série que iniciei aqui e dei continuidade aqui. A Universidade Eduardo Mondlane (UEM) acaba de atribuir esta tarde mais um Doutoramento Honoris Causa. Desta vez a Doutora já era doutorada e trata-se de Berit Olsson. A laureada com o DHC em Ciências de Educação foi (não sei se continua) directora da Agencia Suéca para o Desenvolvimento Internacional, (ASDI) também conhecido por SIDA/SAREC. O “Saco azul” da UEM e que a tornou numa das universidades africanas cujo orçamento já chegou a ser financiado em mais de 80% pela "industria da caridade". A “indústria da caridade” e, de alguma maneira, o Governo-Estado são, portanto, as duas orquestras que escolhem o ritmo da música que se toca na UEM. Em outra ocasião ainda abordarei as implicações disso para a tão cara liberdade académica e utópica autonomia institucional.


A UEM andou em mãos lençóis com a SIDA/SAREC. Isso ocorreu depois de algumas auditorias levadas a cabo pela SIDA/SAREC, num processo contabilístico bastante deficiente que, alegadamente, identificou desvio de aplicação, e falta de justificação, de fundos ainda na era da reitoria “autocrática” de Brazão Mazula. A SIDA/SAREC zangou-se e chegou a ameaçar, virou moda, cortar os fundos caso não se repusessem os fundos. Em algum momento era preciso fazer as pazes. Ao que tudo indica a saída foi encontrada para voltar a agradar ao doador. Em Moçambique doador é como o “Patrão é Patrão” de McRoger, sempre tem razão! Neste país acha-se que as instituições só funcionam quando os donos da mola nos dão um puxão de orelhas, não importa se aqueles estão ou não certos e curvámo-nos com o rabo entre as pernas para não cortarem os fundos. Os DNC surgem, como sugeri antes, como uma estratégia de buscar recursos matérias e simbólico transaccionado esse título honorífico.


Prometi reflectir, neste número, sobre até que ponto os nossos laureados contribuíram para o avanço da “cultura académica” e do “espírito científico”? O que estaria por detrás da recente corrida das universidades a procura de figuras honráveis? Fiquei também de abordar o que designei de lógica de competição no mercado do ensino superior. Sugeri que a atribuição de Doutoramento Honoris Causa à figuras publicas, com prestígio, podia ser visto como uma estratégia de marketing para adquirir vantagem competitiva nesse mercado. Antes de prosseguir permitam-me referir-me aos comentários interessantes de Sueli Borges, aqui, e de Bayano, sobre o assunto.


A Sueli colocou-me questões pertinentes sob a clareza dos termos que usava. Referia-se no seu comentário a necessidade de esclarecer o que chamo de “cultura académica” e de “espírito científico”. Respondi, parcialmente, a estas questões em comentário, mas talvez fosse importante retomá-las aqui de uma forma mais aberta. Devo reconhecer que há uma certa postura normativa quando questiono até que ponto o prestígio dos laureados radica do campo académico ou contribui para o reforço da “cultura académica” e do “espírito científico”. A minha postura é, de alguma forma, normativa porque sugere o que devia orientar a atribuição dos galardões a partir de uma certa concepção de universidade. Há uma certa visão de universidade e academia por detrás dessa sugestão. É essa visão de universidade que propicia uma “cultura académica” e um “espírito científico”.


Existe uma história milenar de transformação da universidade que não importa retratar aqui. A ideia de universidade que preconizo pode ser considerada algo conservadora principalmente se atendermos a diversidade de formas com que se apresenta esta instituição hoje em dia. Algumas características identificam-se com a concepção de universidade de John Henry Newman (1852). A universidade, segundo Newman, é um lugar para onde vem estudantes de todos os quadrantes para todo tipo de conhecimento; um lugar para a comunicação e circulação de pensamento, por meio de interacção. É o lugar para onde milhares de escolas fazem contribuições; no qual o intelecto pode seguramente variar e especular. É o lugar onde a inquirição é levada sempre em frente, descobertas verificadas e aperfeiçoadas, e o erro exposto, por colisão de mentes (ideias), e com conhecimento pelo conhecimento.


Por outras palavras a universidade é o lugar de busca incessante de conhecimento. Uns podem questionar: mas que tipo de conhecimento? Outros vão defender que a universidade devia produzir conhecimento relevante para os problemas da sociedade. Conhecimento útil. No nosso caso, podíamos dizer por exemplo conhecimento para combater a “dita-cuja”, que dizer a pobreza absoluta. De modo geral quando se fala em conhecimento útil refere-se a ideia da sua aplicabilidade. No entanto, frequentemente, nessa ansiedade pela utilidade, nos esquecemos que o mais útil conhecimento é aquele baseado num entendimento profundo. E esse profundo conhecimento pelo entendimento só pode ocorrer numa universidade relativamente descomprometida com agendas políticas. Numa universidade que articula claramente a sua visão de instituição acima de tudo virada para reforço da “cultura académica” e do “espírito científico” que propiciam a busca desse incessante de entendimento. Alguns criticam a ideia de conhecimento pelo conhecimento ou conhecimento como fim em si mesmo. E verdade que este tipo de universidade é um tipo-ideal (puro) e não existe, efectivamente, na realidade. Podemos encontrar aproximações, i.e., universidades muito próximas e aquelas bastante distantes deste ideal.


Wilhelm von Humboldt foi convidado a escrever um memorando para a criação da Universidade de Berlin, lá para os anos 1810. Nesse memorando, Humboldt deixou explícitos aquilo que são alguns princípios que regem uma universidade. Esses princípios ficaram conhecidos como visão Humboldtiana de universidade. Os três princípios da Universidade segundo Humboldt são: a) unidade de pesquisa e ensino; b) liberdade de ensino e c) auto-governação académica. Estas visões, primeiro de Humboldt e depois de Newman, informam a concepção ocidental das funções da universidade. Podemos encontrá-las com algumas diferenças em todas as partes da Europa e até mesmo do mundo. A ideia de Newman de descobertas verificadas e aperfeiçoadas e da exposição do erro por colisão de mente com mente, ou a de Humboldt de conhecimento com conhecimento através da pesquisa, estão por detrás do que considero ser o ethos da “cultura académica” e do “espírito cientifico”. Tudo que a universidade faz ou deixa de fazer, incluindo galardoar pessoas com DHC, de alguma maneira, devia estar enquadrada nestes princípios. Não sei se fui feliz na exposição destas noções. Na prática o que estou a tentar sugerir é que toda a universidade que faz por merecer essa designação devia deixar clara a sua visão em relação a como se entende ela própria no que diz respeito a estes princípios. Isso deveria ocorrer em todos os seus actos principalmente como os DHC.


O argumento que tenho estado a tentar apresentar sugere que os galardoados que mencionei, nos textos anteriores, não representam em nada estes princípios universitários. Como referi antes, o reconhecimento dessas figuras radica, fundamentalmente, do capital simbólico, isto é do prestígio, que amealharam no campo político. Por exemplo, as figuras reconhecidas pelo contributo artístico têm seu reconhecimento e legitimidade derivadas não das regras de jogo no campo artístico, mas das regras de jogo do campo político. Já posso ser mais directo aqui e algo imodesto. Os galardoados com o DHC ainda que, fortuitamente, pudessem representar, com as suas obras e acção, algo para o avanço da “cultura académica” e “espírito científico” que rege, em princípio, uma universidade não parece que tenham sido laureados por tal. São “raios caídos do céu azul”, “outsiders” da academia. Posto isto, porque razão as universidades estão numa correria em busca de figuras com aquele perfil?


Vantagem competitiva

Penso que há fundamentalmente duas razões para a procura de figuras honráveis pelas nossas universidades: a primeira é a que expus no início desta série. “Quem não têm cão caça com gato”. Como não produzimos prémios Nobel, e pelo jeito que as coisas estão, nem se vislumbra isso, vamos pelo corta mato, DHC. Os nossos DHC valem pelos Prémios Nobel que não te(re)mos. A segunda razão, quanto a mim, mais determinante, é o novo contexto de competição, ainda que incipiente e desregulada, das universidades no contexto de um ensino superior liberalizado.


Como referi antes, não está aqui em causa o prestígio dessas figuras laureadas na nossa sociedade. O que está em causa é a base/origem de seu prestígio. Ainda assim essas figuras quando associadas a certa universidade emprestam-lhes, no mínimo, alguma visibilidade. As universidades no nosso país, tal como outras organizações, requerem uma variedade de recursos para prosseguirem com as suas missões. Esses recursos incluem estudantes, professores, pesquisadores (no nosso caso muito poucas ligam este aspecto), dinheiro (fundos) e prestígio. Cada um destes recursos podem atrair os outros. Bons estudantes atraem bons professores e vice-versa, universidade com prestígio idem, bons pesquisadores querem universidades com bons estudantes, fundos para pesquisa, e por ai em diante.


Dada a importância destes recursos para a sobrevivência e sucesso das universidades manter cada um deles em níveis elevados é o que engaja as universidades, mesmo que não estejam conscientes disso, em competição umas com as outras. A competição, neste caso, é constitutiva de um contexto de multiplicidade de provedores de serviço educacional segundo a lógica do mercado. Este é o novo contexto que caracteriza o cenário do ensino superior nacional desde a sua liberalização em 1993 com a entrada em vigor da lei do ensino superior. Passamos a ter universidades privadas e públicas, laicas e denominacionais (religiosas), ensino presencial e a distância, enfim toda uma variedade de mecanismos de atrair clientela.


Nunca antes a Universidade Eduardo Mondlane sentiu-se necessidade de lembrar aos seus “clientes” que é a “maior e mais antiga”, fê-lo assim que se sentiu ameaçada pela concorrência. A UP hoje reclama o estatuto de “maior”, por ter maior número de estudantes, ainda que não possa disputar a antiguidade. O ISPU, hoje A Politécnica, lembra sempre aos seus “clientes” que das privadas é aquela que tem mais tradição, afinal foi a primeira. A Universidade Católica diz que não está para o lucro ainda que lucre. O ISCTEM diz que é a pioneira em termos de fornecimento de cursos de medicina dentária e informática. Enfim, cada universidade vai sobrevalorizar aqueles aspectos que julga trazer-lhe mais prestígio de acordo com aquilo que percebe ser a expectativa dos seus “clientes”. É a este fenómeno que designo procura de vantagens competitivas. Os DHC surgem neste contexto com uma estratégia de promoção da imagem destas universidades e não, necessariamente, do reconhecimento do valor dessas figuras e de seu contributo para o avanço da “cultura académica” e do “espírito cientifico”.

9 comments:

Nyabetse, Tatinguwaku said...

Olá mano, não vou comentar no texto no seu todo (não hoje anyway), só queria dizer que o assunto SIDA/SAREC de que falas ocorreu numa altura em que eu devia escrever a tese, e por causa do conflicto, não me foram atribuidos meios financeiro pelo departamento (na UEM), de forma que tive que financiar tudo sozinha, incluindo uma viagem e estadia por 1 mes na Africa do Sul!

Beijocas

Nyikiwa said...

Caro Patrício,

É pertinente o comentário que faz sobre a atribuição dos títulos de Honoris Causa a certas pessoas. Eu gostaria de saber quais são os critérios para a outorgação desses títulos.

Concordo consigo que esses títulos foram atribuídos com base no prestigío porque desconheço as acções dos Doutores Honoris Causa. Pelo que eu saiba esses títulos são atribuídos em função das actividades desenvolvidas por certas pessoas.

Abraço,

Nyikiwa.

Patricio Langa said...

Cara Nyabetse
É uma pena que isso tenha acontecido consigo. No entanto, para cada porta que se fecha uma janela se abre. Pelo que pude ler nos seus blogs superou esse contratempo. Quem sabe se a SIDA parasse mesmo de nos “ajudar” para se ajudar a UEM seria a próxima Nyabestse?
Abraço

Patricio Langa said...

Estimada Nyikiwa
Ahhhh, já descubro o seu blog!
Também gostaria de saber quais são os critérios.
Só assim faria mais sentido a avaliação do mérito.
Volte sempre.
Abraço

Elísio Macamo said...

patrício, estás de parabéns por esta análise muito interessante. abraços

Sueli Borges said...

Oi Pat Langa, tudo bem?

Massa (ou nice)!
O seu texto elucida, de forma mais professoral do que bloguista, as suas idéias e, ainda bem, voce declarou que alguns dos conceitos que voce aborda são normativos. Cultura e espírito acadêmicos devem pautar-se, sim, na autonomia em amplo espectro, inclusive a autonomia política, já que a academia não é, e acho que nunca foi, neutral.
Mas, a cultura acadêmica também é enriquecida através da troca de saberes, não somente entre os parceiros e iguais, mas também com os de fora, resguardando, igualmente, o espaço de autonomia de cada um.
Talvez, idealmente, seria interessante que os DHC fossem um caminho para esta troca e compartilhamento de saberes. A Universidade, abrindo suas portas, que já andam tão mercantilizadamente abertas, concede o título a alguém de fora, que tivesse comprometimento com um tipo de saber ( ou de fazer), havendo, então, um ambiente para a interseção de conhecimentos.
O problema seria, então, deslocado para a definição de critérios de concessão dos títulos, o que geraria um capital simbólico menos voltado para o aspecto do “quem não tem cão caça com gato”, né não?!
Meu abraço atlântico, desta vez, vai desviado pelo índico.

Patricio Langa said...

Caro Elísio.
Obrigado pela visita e pelo comentário deixado.
Abraço.

Sueli,
Bom ver o teu olho da rua por aqui.
Estou bem, obrigado.
Acho que tudo volta a questão dos tão caros critérios.
São esses que nos permitiriam vislumbrar parte do sentido por detrás das DHC.
Abraços

Unknown said...

Mais uma vez está de parabens por este desenvolvimento.

Abraços

Patricio Langa said...

Estimado Chacate Joaquim,
Obrigado, volte sempre.
Abraço