Lá do outro lado do Atlântico, de Salvador da Bahia, escreve-nos Sueli. E parece que nos escreve, aqui, da esquina. A aparência surge pela familiaridade da realidade descrita deste nosso habitat, o mundo. Dos problemas do Ónibus de lá, o nosso TPM de cá, ou se quisermos do “Chapa 100” a, diga-se, A “Miséria do Mundo”. Claro, essa mesmo denunciada por Bourdieu e que ecoava em meu pensamento a cada linha que lia. Leiam os clichês de Sueli que não se arrependem.
Clowns
De clichês, de pessoas, de mim, do que eu sinto, ouço, vejo e sou. De pessoas iguais, de sonhos, de mundo. De realidades, de farsa, de força, de poderes. De imperfeitos, de coisas fora de esquadros. De andanças, de esperanças. De valores e do que nada vale. De clichês?
Eu hoje queria falar sobre o mundo e não acho que este mundo que eu queira falar seja um bom lugar. Perversamente globalizado, esfomeado, consumista, dividido, repartido, vendido. Com o perdão da palavra deselegante: um mundo fo**** e filho da p***.
Nossos pensamentos acadêmicos têm se prestado a muito pouco de melhora para este mundo por estarem atrelados, sempre. Nossas militâncias políticas estão matando-nos mais do que nos fortalecendo. Nossos partidos estão a serviço dos outros. Nunca o mundo foi tão próspero e propício e tão desumanamente fo****. Nunca tivemos tanta produção excedente de comida e tanta fome. Nunca tivemos tantos recursos para tratamento de água e tantos morrendo por consumo de água contaminada. Nunca tivemos tantos e tantos avanços e um mundo desgraçadamente fo****. Nunca tivemos tantos estados democráticos e um mundo vergonhosamente aniquilado. O desemprego, a fome, a ignorância, o conformismo nunca foram tão naturais, ou para alguns, vitais. Clichês?
Decidimos que seria assim: os do norte e os do sul. Os do norte que desfilam em jipes pelas ruas, num safári urbano, para ver os macacos do sul. Mas macacos vivem nas cidades?! Os humanitaristas do norte. Os descalços do sul. Decidimos quem deve comer e quem deve comprar. Quem deve morrer e quem deve ser a miséria. Se não decidimos, reproduzimos, o que dá no mesmo. Se não somos como eles, aprendemos a imitá-los através da pedagogia da repetição. Culturalmente somos eles. Midiaticamente somos eles. Universalmente somos eles. Mas não somos eles. Somos exterminados. Ou somos reproduzidos e programados desde o Congresso de Berlim até a Convenção de Washington. Desde os navios negreiros até a esmola nas ruas. O que me leva a descrer que este seja um lugar razoável. Clichês?
Estas últimas semanas, sem carro ainda por conta de um acidente, uso o transporte coletivo, o popularmente chamado de buzão, buzu, ou formalmente, de ônibus. Tenho a sensação que saí da bolha de ar condicionado para pensar, ao ver as pessoas. Eu que me tenho na alta conta de uma pessoa não alienada, dirijo meu carro com vidros fechados, hermeticamente, e, normalmente, não me preocupo com o preço da gasolina. Apenas encho o tanque de combustível e sigo. Desalienada eu?! Mas, nestes últimos dias, blasfemando, nervosa, suada e atrasadíssima aos meus compromissos, sujeita à desorganização dos transportes públicos lotados, faço meus vários caminhos rotineiros e olho para as pessoas, enfim. É gente honesta, é gente drogada, é gente pedinte, é gente marginal, é gente alegre,é gente inocente, é gente esperta, é gente que vai trabalhar, é gente que vai procurar emprego, é gente jovem que vai estudar, é gente...um gado. Mas gado anda nas ruas? Clichês.
Fico feliz ao ver um jornal sendo distribuído gratuitamente no centro da cidade e esta mesma gente lendo no caminho, no ônibus, como no metrô de Paris, lá no norte. Gente lendo! Imediatamente recorro a quem diz que a gente não quer só comida, a gente não quer só dinheiro, a gente quer diversão, arte, balé, prazer para aliviar a dor. Clichês!
Pelas conversas alheias, que adoro escutar nos meus trajetos, sei que a maioria desta gente apenas lê, sem saber compreender, nem interpretar. Letramento?! Gente que sabe que nunca vai à Universidade. Gente de engrenagem. Gente que se faz de cifras do governo, governo que erradica o analfabetismo, analfabetismo que se alia ao desemprego, desemprego que cumpre a função do cutelo da foice. Clichês?
Eu não sei se me emociono por que sinto pena ou por uma revolta infantil que me dá ou por que minhas mãos nada alcançam neste contexto. E eram para alcançar?!
Peço licença à pesquisadora, à assistente social, às minhas análises sociológicas e políticas, à moça bem educada e trabalhadora. Peço licença a esta que me corrói os nervos diariamente e que por pouco escapou de tantas coisas. Peço licença para poder me emocionar e ver que, de fato, minhas mãos nem alcançam uma ou outra pessoa que passa por mim.
E, enquanto eu vou, não mais de ônibus, mas com um carro emprestado que consegui hoje, pelas vias expressas da cidade nestes caminhos de rotina , cumprir o meu papel de paladina da Justiça, aquela mesma gente vai por outro caminho, dos coletivos, fazer fila em frente à mesma Justiça. E eu, com minha incorrompível ética de servidora pública e minha concepção de inabalável de moralidade, com minha voz austera e meus saltos altos, que agora já posso usar por que não vou mais de ônibus, digo a esta gente sobre seus processos e benefícios. As mesmas ética e moral que empilham centenas de processos nos armários depois da minha jornada de sete horas de trabalho. Clichês?!
Enquanto eu vou para a minha pesquisa, aquela mesma gente continua sem interpretar. é gente que eu posso até entrevistar e ao escrever, encontrar um terceiro caminho metodológico e ter uma aprovação acadêmica com louvor. Posso até mesmo fazer um prefácio de agradecimento a esta gente. Depois com esta mesma gente-objeto-gado-cifra vou ao doutorado, ao pós-doutorado e ao que mais vier. Clichês?
Enquanto eu toco algumas vezes, alegrando os imbecis com acordes difíceis e sofisticados da bossa nova, que não esteve nem aí para nada, esta gente compõe uma música esteticamente inclusiva, que faz tremer os críticos puritanos. Uma gente e uma música que estronda, diária e sorrateiramente. Clichês!
Enquanto nas noites em que eu bebo a cerveja mais cara e fumo cigarrilhas importadas ou outra porcaria qualquer e gasto dinheiro, verborréio com meus vaidosos parceiros intelectuais, acerca desta gente, verdades de mesa de bar, esta gente se disfarça de morte no camburão da policia, nos grupos de extermínio oficializados, ou se faz avião para o narcotráfico. Esta gente é que me olha, que por várias vezes me assalta materialmente e, como agora, rouba minha intimidade, a minha lucidez, a minha serenidade e as minhas horas de sono. Clichês?
Mas eu sou também esta gente e dela faço parte e, assim, não escapo igualmente da desgraça.
Não escapo da desgraça, igualmente a esta gente, como também não escapo á sua-nossa descrença, á sua-nossa fome, à sua –nossa passividade, ao seu-nosso desespero. Nem por um triz, como disse antes, escapo, escapamos. Clichês!
E é por um triz a gente vive neste país, eu diria, um país de merda! Perdão. Um país de merda, não, um país em desenvolvimento, uma nação ora bolas! Numa nação que vitimizada, vitimiza.
A criação do Homem, de Michelangelo, aquele dedo divino que toca o dedo do mortal e a ele concede a vida, com certeza não foi inspirado em nós!
Quero dizer que a divindade que nos humaniza a todos (será?) foi mal distribuída mundialmente. Restou para nós o vagar eternamente no espaço que não é nem céu nem inferno. E nada é mais terrível do que não ser nem deus nem o diabo. Ser limbo!Ser do Sul!
E já que somos assim, povo mesmo, cantemos então a quadrinha popular:
“ô raia o sol, suspende a lua.
Olha o palhaço no meio da rua!”.
Ô raia o sol, suspende a lua.
Olha o palhaço no meio da rua!”.
Palhaço? Povo?
Clichês, clown?
Apenas uma coincidência.
Somente palavras que começam com a mesma letra!
Salvador, nas terceiras horas do dia 22 de outubro de 2007.
Sueli Borges.