Tentei, há alguns dias, ao que me parece sem sucesso, publicar este texto num dos Jornais nacionais para que mais leitores tivessem acesso as ideias aqui debatidas. Para que o assunto não fique completamente ultrapassado vou publicar o texto em duas partes aqui no Blog.
Primeira Parte
Convicção é a certeza que temos de que as coisas são aquilo que nós achamos que são. Quando alguém se convence de alguma coisa tem a tendência de não procurar estabelecer com certeza o que sabe. Já está convencido. A convicção é, pode-se assim dizer, uma manifestação de certeza. Parte-se do princípio de que já se obteve informação suficiente para se chegar à certeza de que as coisas são de certa maneira e não de outra. Portanto, podemos ver a convicção como uma opinião forte, ou melhor, ainda, como uma espécie de crença.
Não é preciso muito para ganhar a convicção sobre alguma coisa. Por exemplo, aqueles que acreditam na existência de Deus satisfazem-se com a história da Criação. Aqueles que não acreditam em Deus, por sua vez, satisfazem-se com pequenas incongruências nos respectivos livros sagrados das religiões. A maneira como as pessoas se convencem de certas coisas varia em função de várias coisas tais como educação, cultura, religião, astrologia, ciência e por aí em diante. O meu avô, por exemplo, convencia-se da proximidade do tempo da chuva e da chegada da altura de preparar a sementeira quando os pássaros começavam a voar a uma baixa altitude. A sua experiência de observação da regularidade com que isso acontecia dava-lhe razões suficientes para proceder assim.
Muitos dos leitores deste texto provavelmente precisariam de outro tipo de informação para chegar à mesma convicção. Por exemplo, alguns iriam acompanhar os serviços de previsão meteorológica. As duas maneiras de proceder para buscar a certeza são legítimas. No entanto, não se deve confundir a validade do raciocínio e do procedimento com a verdade das proposições. O facto de, na observação do meu avô chover quando os pássaros voam baixo não significa que só chove quando os pássaros voam baixo, nem que sempre que chove seja porque se aproxima a época da sementeira. O tipo de ilações que tiramos em resultado da forma como raciocinamos tem um alcance limitado que precisamos reconhecer.
Sendo assim, gostaria de sugerir a ideia de que as nossas convicções são sustentadas pela validade da informação que temos. A validade, por seu turno, depende da confiança que depositamos na capacidade de determinada informação nos descrever fielmente alguma coisa. Essa informação chama-se evidência. A evidência é, portanto, a informação que justifica e sustenta a convicção. Por outras palavras, a evidência é a informação que indica se a crença ou opinião que temos é “válida”. Esta é uma maneira muito geral de apresentar estes dois termos importantes sobre o processo de produção de conhecimento no geral e científico, em particular. Penso que este nível de elaboração é suficiente para os propósitos deste artigo. Estou interessado em analisar a relação entre as convicções que temos sobre os tumultos e as evidências de que dispomos. Gostaria de acrescentar mais uma ideia antes de prosseguir: só paramos de procurar evidência (informação) quando achamos que aquela que já reunimos é suficiente para justificar as convicções que formámos.
Esta longa introdução era para perguntar que tipo de informação temos ao nosso dispor para o tipo de conclusões que tiramos em relação às causas das manifestações do dia 5 de Fevereiro. Somos capazes de explicar como é que aquele tipo de fenómenos é possível? Qual é a sua causa? As análises que tenho estado a acompanhar desde aquela “superterça” – como a baptizou o jornalista Jeremias Langa – deixam-me com muitas dúvidas em relação ao peso das evidências sobre as convicções. Parece-me que as convicções são muito mais fortes para aquilo que as evidências nos permitem concluir. Numa balança o prato das evidências penderia para baixo. As convicções dos nossos jornalistas, sociólogos, economistas, psicólogos parecem mais fortes do que as evidências que nos fornecem para explicar a algazarra do dia 5 de Fevereiro. Apresento-vos alguns exemplos de convicções para as quais parece-me existir falta de peso na evidência.
Prevalece, por exemplo, a forte convicção de que o governo é responsável pela onda de manifestações porque não se interessa pela sorte do povo. Esta convicção deriva da pergunta: quem é o responsável (culpado)? Esta pergunta, como é evidente, é circular e sugere fortemente a ideia de que existe um culpado. Num país onde tanto se espera do governo e num contexto em que se parte do princípio de que os problemas sociais têm a sua origem na política é natural que esta pergunta seja colocada e respondida dessa maneira. De facto, o governo é o culpado de tudo em Moçambique. Mais interessante do que estabelecer aquilo que já sabemos seria procurar saber um pouco mais sobre o fenómeno em causa para podermos formular perguntas menos óbvias. Por exemplo, que pessoas e instituições intervem nas razões imediatas dos tumultos, qual é a relação entre si, que tipo de situação específica se criou entre si nos últimos tempos e que cadeia de acontecimentos se pode traçar? Duvido que depois de colocarmos estas perguntas e obtermos respostas para elas ainda nos sintamos tentados a considerar a pergunta “de quem é a culpa?” útil e relevante. É claro que a culpa é do governo. Sempre.
Perversamente, porém, o reparo agora feito não revela apenas a falta de informação que é necessária para que possamos tirar conclusões com conhecimento de causa. Ele revela também a ausência de um debate sobre os limites das atribuições e responsabilidades do governo. Essa fronteira parece-me ainda difusa. O sociólogo Elísio Macamo tem advertido, e com razão, para as consequências nefastas desta falta de debate sobre a relação entre o estado e o cidadão. A relevância deste debate para a utilidade do tipo de questões que colocamos na nossa tentativa de percebermos o que se passou no dia 5 de Fevereiro é óbvia. Fala-se de contracto social no nosso país, mas a pergunta é justamente essa: existe um contracto social? Como é que ele é entendido pelas partes contractantes? Que expectativas cria? Como se espera que seja cumprido? Como podemos facilmente ver, falta aqui informação para podermos tirar conclusões sólidas. É mais um caso de muita convicção para pouca evidência (informação).
Predomina também a forte convicção de que se o governo quisesse poderia fazer algo para evitar a carestia da vida. Esta é uma outra maneira de dizer que o governo é que é culpado. Mas poderia mesmo fazer algo? De que maneira? Com relação a este aspecto poderia repetir as questões que formulei acima. A conclusão a que chegaria é de que não só parecemos não conhecer as capacidades e limitações do nosso próprio governo como também fazemos depender a solução de problemas estruturais da boa vontade de pessoas. Temos, portanto, duas grandes questões. A primeira refere-se ao conhecimento público sobre a disponibilidade do nosso Estado. Se as pessoas soubessem de onde vem cada centavo que o governo vai alocar – em forma de subsídio aos “chapas” – para manterem o preço, se soubessem o que é que isso lhes vai custar em termos de fardo de dívidas e de perpetuação da dependência ao auxílio, talvez até se predispusessem a pagar um pouco mais. Ou não, quem sabe? Mas em que fórum isso é debatido?: local, municipal, no governo? Qual é o grau de envolvimento de cada cidadão? Mais uma vez, esse é apenas um assunto do governo. Este é o problema que Macamo atribuiria aos problemas de representatividade do nosso sistema político. Não há espaço suficiente para fazer com que o cidadão lá ao nível do seu bairro, município, distrito ou província saiba dos problemas e das possíveis soluções. Bastam-lhe suposições sobre como as coisas funcionam.
A segunda questão tem a ver com a qualidade da nossa abordagem do problema. A partir do momento em que supomos que o problema seja ao nível de “boa vontade” limitamos muito o tipo de respostas que podemos encontrar. A procura da resposta torna-se na procura de provas da má vontade de quem de direito. Isto não quer dizer, obviamente, que com mais boa vontade não se resolvesse mais problemas. Contudo, explicações que se baseiam nisso limitam bastante o seu próprio alcance. Sobressai a forte convicção de que os tumultos são uma reacção à percepção da inacção do governo. Num contexto em que há assimetria de informação entre o que o governo pode e não pode fazer há espaço fértil para a criação de expectativas falsas. O governo pode tudo, só não faz por falta de vontade política, outra forte convicção. A mesma convicção que alimenta o imaginário social de que a condição de vida “abastada” que os membros do governo levam, não lhes permite ter sensibilidade para as reais dificuldades que o “povo”enfrenta. Convicção, convicção, e mais convicções.
É por tudo isso que o governo deve ser punido. Se pegarmos nas mesmas convicções agora (acusatórias) e as analisarmos com um pouco de distanciamento notaremos que existe fraca evidência (informação) para cada uma delas. Predomina uma forte ilusão da transparência. Essa fraca evidência torna as evidências (acusatórias) num argumento circular. Se o governo não fosse tudo aquilo de que é acusado pelas fortes convicções, então, não haveria desigualdades sociais, pelo menos não nos níveis actuais – que níveis? – não haveria tanta criminalidade – tanta?, não haveria subidas mensais do preço do combustível – não haveria?, não haveria subida do trigo – não haveria? e por tudo isso não haveria razão para a zanga do povo, assim como não haveria porque punir o governo com os tumultos. Só há tumultos, e já agora, linchamentos, porque o governo é tudo aquilo que as convicções afirmam e confirmam. Estamos em presença de formas circulares de raciocínio.
Cada carro de luxo, cada casa no triunfo ou em Beleluane, cada comparticipação em empresas enfim é a evidência de que se esparava para sedimentar as convicções. Mas será mesmo esse tipo de evidências que devíamos buscar para analisar a eficiência ou não do governo no cumprimento das suas atribuições? No fundo, a ostentação de riqueza e bem estar num contexto socialmente precário como o nosso é irresponsável e imoral, sobretudo quando é feita por governantes. Mas não é a repreensibilidade moral deste tipo de comportamento que demonstra a incapacidade e incompetência do governo. O único que o recurso a estas “evidências” faz é dar coerência a uma relação problemática de causalidade, a saber, a ideia de que alguém que ostenta riqueza não presta. Assim, os tumultos acontecem porque o governo corresponderia à representação que se faz dele.
Existe um outro tipo de convicções que não difere das que apresentei até agora em termos do seu teor acusatório. No entanto, este outro tipo de convicções põe mais ênfase numa leitura erudita e racionaliza as acusações. Sobressai a forte convicção de que a causa dos tumultos são os níveis elevados das desigualdades sociais que graçam no nosso país. Esta última vai acompanhada, quase sempre, da outra forte convicção de que o Estado está a se alhear das suas responsabilidades sociais tais como a educação, segurança e a saúde por ter enveredado por uma espécie de “capitalismo selvagem”. Nesse contexto, cada um usa as armas que lhe convém. Uns privatizam esses serviços, no verdadeiro sentido do termo, para fazer lucro. Invariavelmente, esses são os próprios membros do governo. Os “chapas” são, nessa óptica, de familiares e membros do governo. Quem diz os “chapas”, diz também as padarias, as bombas de combustível e por aí em diante. O “povo”, por seu turno, privado desses bens e sem saída, privatiza, em reacção, o monopólio legítimo dos meios de violência. Os linchamentos e os tumultos seriam nessa perspectiva uma reacção a essa privatização dos serviços sociais básicos para a vida dos cidadãos. Os tumultos seriam a reacção à inacção do governo. [Continua].
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