Monday, October 8, 2007

Em defesa da Universidade: o surgimento das pseudo-universidades em Moçambique. [4]

Após o interregno para o fim-de-semana continuo a série sobre as pseudo-universidades. Para os que não estavam a acompanhar a série que já vai no seu quatro artigo, poderão fazê-lo bastando clicar aqui [1 - Introdução], aqui [2 - Um fenómeno glocal...] e aqui [3 - O que é, então, uma universidade? ]. Boa Leitura!



As Pseudo universidades[4].


Em Moçambique, a liberalização da economia, na verdade da sociedade, que teve seu acto inaugural com a introdução da constituição de 1990 e a prévia adesão as instituições de Bretton Woods (Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional), começaram a surgir novos provedores de serviços de educação. Menciono aqui algumas instituições que surgem na década de 1990 a título exemplar: Universidade - Universidade? - Católica de Moçambique, (UCM, 1995), Instituto Superior Politécnico e Universitário - Universitário? -(ISPU, 1995), Instituto Superior de Ciências e Tecnologia de Moçambique (ISCTEM, 1996), Universidade - Universidade? - Mussa bin Bique (UMMB, 1998), Instituto Superior de Transportes e Comunicação (ISUTC, 1999).

O processo de surgimento de novos provedores encontra outro, lento, de criação de novas instituições públicas para além das já existentes UP e ISRI (Instituto Superior de Relações Internacionais). Numa vertente mais especializada, algo para militar, surgiram a Academia de Ciências Policiais (ACIPOL, 1999), Academia Militar Samora Machel (AMSM, 2003). A partir de 2005 começaram a surgir os Institutos Superiores Politécnicos: os agrários de Gaza e Manica (2005) e o de Minas em Tete (2005), todas instituições públicas.

As privadas não deixaram seu crédito em mãos alheias. Só entre 2004 e 2005 surgiram a Universidade – universidade (?) - Sto Thomas de Moçambique (USTM, 2004), Universidade – universidade (?) - Jean Piaget de Moçambique (UJPM, 2004), Instituto Superior de Educação e Tecnologia (ISET, 2005), Instituto Cristão de Moçambique (superior!) (ISC, 2005), Escola Superior de Economia e Gestão (ESEG, 2005) e Instituto Superior de Formação, Investigação e Ciência (ISFIG, 2005). Estas são apenas algumas das que contabilizei em 2006. Nessa altura pelo menos mais três novas estavam na lista a espera da aprovação pelo Ministério da Educação e Cultura. Por extrapolação o subsistema de ensino superior no país, hoje, deve contar agora com perto de 30 instituições.

Uma boa parte destas instituições são estritamente viradas para a busca do lucro, fácil. O seu negócio principal tem como produto a educação, o ensino. Seus estudantes constituem, em muitos casos, a única fonte de geração de receitas. Os estudantes são clientes no estrito sentido do termo. Perder um por, alguma razão, reprovação por exemplo pode representar um custo e risco muito grande para a própria existência da instituição. Há que fazer de tudo para mantê-los lá como clientes fies até se efectuar a derradeira troca da última propina, passados cinco anos, pela credencial. As que se derem bem no negócio poderão um dia destes serem cotadas na BVM (Bolsa de valores de Moçambique). Esta figura é mesmo para dar a real dimensão da centralidade da ideia de negócio como o móbil de algumas das pseudo-universidades. Precisaria de algumas noções de economia para avaliar em que medida existe concorrência entre as instituições e se esta é leal. Mas a noção de campo que apresentei na introdução já dá conta do recado. Preciso é, agora, estudar a dinâmica desse campo. Como é que ele opera? Que estratégias seus actores adoptam para amealhar que formas de capital? O que está em jogo? Quais são os interesses em causa? Privados? Públicos? Que implicações tem isso para o sistema, em si, do ensino superior? E para os estudantes? Enfim, eis um campo fértil para e por ser explorado no nosso país. Pessoalmente designo esse campo como sendo o da Sociologia do Ensino Superior. Uma sociologia por fazer ainda. Retomemos, no entanto, as pseudo-universidades.

Geralmente, as pseudo-universidades são muito especializadas. Não oferecerem cursos ou programas de uma maneira geral nas diferentes disciplinas científicas, mas orientam-se segundo seu alvo. É um negócio dirigido para a satisfação das necessidades criadas no mercado e por isso são susceptíveis de mudar em função da mudança desse mesmo mercado. O curriculum é o mais flexível para acomodar as necessidades e demanda dos estudantes-clientes. Se de repente uma área fica fora da moda, é imediatamente substituída por outras.

Se percorrermos pelos seus programas curriculares notaremos que boa parte delas só oferecem cursos em que os estudantes só precisam se fazer presentes a sala de aulas com caneta e papel. São cursos de CANETA E PAPEL! Direito, gestão e administração, os famosos MBA, informática e tecnologia de informação (neste caso, com os preços da Internet e dos próprios computadores a baixar todos dias o computador será a próxima caneta) são na generalidade os cursos predilectos. As mais ousadas, em termos de investimento relativamente avultado, ainda introduzem alguns cursos de engenharia, mas muitos deles ministrados sem nenhuma prática laboratorial. É ENGENHARIA ORAL. Portanto, a regra aqui é escolher áreas em que se faça o menor investimento possível em termos de custos (de produção de credenciais) com a instrução e se amealhe a maior margem de lucro possível.

Outra característica marcante das pseudo-universodades está relacionada com o seu quadro de pessoal docente e técnico administrativo. A qualificação chave da sua administração é a própria administração do negócio. As decisões curriculares não resultam necessariamente de actos colegiais, de debates nas faculdades com intervenção dos docentes. Aquelas são tomadas em função da sua viabilidade económica. Assim, não há necessidade de ter um corpo docente permanente. Pode ser que a demanda mude e não se precise mais daquela especialidade. Aí dispensa-se o docente dessa área. Manter um corpo docente permanente pode representar um custo insuportável. Os custos são mantidos baixos contratando docentes a tempo parcial (part-time) para fornecer módulos. As pseudo-universidades vivem normalmente na e da boleia do corpo docente das instituições públicas. Os docentes, principalmente, os iniciados na carreira, vem nelas uma oportunidade para aumentar um pouco mais seus parcos rendimentos. Enquanto a pública lhes garante relativa segurança em termos de emprego fixo, a privada eleva a margem de rendimentos, mesmo que seja de forma esporádica. Não se entenda isto como uma apologia da pública de modo geral. No mundo inteiro há uma tendência de privatização. E este processo não é o principal responsável pela pseudo-universidade. A comercialização, Macdonalizada, sim.


A liberdade académica, no seu sentido tradicional, nas psedo-universidades tende a ser de alguma forma limitada. Os docentes, muitos deles contratados parcialmente, não têm um cometimento forte com a instituição a ponto de defenderem seus ideais pedagógicos de ensino e aprendizagem. Eles têm que se limitar a ensinar aquilo que está pré-estabelecido nos programas. Por vezes, e não são raras, têm metas percentuais obrigatórias por atingir em termos de aprovação. Não há protecção alguma para quem quiser expressar divergência em relação a estes critérios. Negócio acima de tudo!

Nas universidades tradicionais, existe o conceito de gestão participativa que significa que os docentes têm uma palavra e papel significante na tomada de decisões acerca do funcionamento da instituição. Nas pseudo-universidades a noção participativa é simplesmente fagocitada pela de gestão. Quem paga a música são os gestores, e por isso escolhem o ritmo.

Um outro aspecto tem a ver com a pesquisa. As pseudo-universidades, geralmente, não têm interesse pela pesquisa. A pesquisa iria lhes desviar do seu objectivo central de buscar o lucro. Quando existe alguma é em forma de consultoria. Principalmente porque a consultoria é o negócio que está dar hoje em dia. O trabalho de pesquisa requer um corpo docente e de investigação permanente e até qualificado. Já foi dito aqui que esse não é o forte dessas instituições. Foi dito também que essas instituições evitam custos elevados em investimento. Pesquisa, dependendo das áreas, pode representar custos bastante onerosos em recursos, por exemplo, laboratoriais. Os investigadores também precisariam da liberdade e autonomia que lhes é limitada nessas pseudo-universidades para conduzirem suas investigações sem a pressão da gestão. Todas estas observações podem nos levar a conclusão prévia de que as pseudo-universidades não têm, necessariamente, um cometimento com o interesse público ou com a ideia de servir a sociedade. Servir a sociedade é um efeito colateral. O seu objectivo central é o lucro, mesmo que o justifiquem em nome do cometimento público. No nosso país, a desculpa politicamente correcta é dizer que se quer contribuir para aumentar as possibilidades de acesso, aumentar o número de doutores, para reduzir a pobreza absoluta e promover o desenvolvimento. Quem não compraria este papo? Só não soa bem na cabeça de sociólogos, que desconfiam até do bem intencionado. É que os sociólogos desconfiam de tudo por uma questão existencial. No dia que o deixarem de fazer, serão uma espécie extinta.

2 comments:

Anonymous said...

Caro Pat

Permita-me “invadir” o seu espaço, para dizer o seguinte.
No essencial estou de acordo consigo, principalmente, no que diz respeito à lógica mercantil, do lucro destas chamadas pseudo-universidades. No entanto, penso que a reflexão não pode se cingir apenas na constatação disso, pois até aquelas que se podem considerar universidades, no sentido estrito do termo, entre nós, já começaram a enveredar pela mesma lógica, no tal discurso de que as universidades devem ser auto-suficientes do ponto de vista financeiro. A sua pergunta na segunda postagem de que, se não estaríamos no país servidos apenas de pseudo-universidades, é nesse sentido pertinente.
Penso ainda que o maior problema não é das pseudo-universidades em sí, mas é de todo o sistema, o ensino superior. Digo isto porque porque as pseudo-universidades existem hoje e continuarão a surgir outras no futuro.
para mim o que tem que haver é um regime, não apenas jurídico, mas também, institucional que re-defina o quadro de criação das universidades em Moçambique. Uma coisa é certa; deveremos ter resposta à pergunta: quando e porquê, de se abrir uma nova universidade em Moçambique. Abrimos uma universidade para colmatar alguma lacuna no ensino superior, porque objectivamente é necessário, ou apenas porque apetece a fulano e fulano fazer isso? Está de todo justificado que tenhamos necessidade de todas essas instituições de ensino superior hoje? Apenas porque o quadro legal permite?
Se não prestarmos atenção nisto, penso que continuaremos a assistir ao surgimento de tantas outras pseudo-universidades, funcionando em paupérrimas condições tal como, você bem diagnosticou em algumas que actualmente estão a funcionar.
O que quero dizer é que, pessoalmente, acho que o surgimento de novas universidades não é mau em si. Desde que exista um quadro institucional que regule isso, e que sobretudo, defina quando é que se deve abrir uma nova universidade. Para mim isto de abrir uma universidade não pode ser deixado ao livre arbítrio de qualquer um, mesmo que sejam empresários-academicos, e com toda a boa vontade que possa estar por detrás disso. Para mim a Universidade é uma coisa muito séria!
So para terminar, na primeira postagem da série você escreveu: as pseudo-universidades “não são universidades e assim não devem ser chamadas ou confundidas”. Pergunto: qual a sua proposta, como é que então devem ser chamadas?

Enfim, há muito pano para manga. Espero, Patrick, que a sociologia do ensino superior esteja mesmo a emergir em Moçambique, que há muito já era necessária.

Aquele Abração de sempre

Neto Seq

p.s. – me desculpe pelo longo comentário.

Patricio Langa said...

Caro Neto.
Obrigado pelo comentário que fazes a série que hoje termina sobre as pseudo-universidades. Assino por baixo no teu comentário, pois concordo com o teu ponto. Na verdade a minha intenção não era, em momento algum, mostrar a irrelevância das pseudo-universidades. Dizes e bem que estas existiram e provavelmente continuarão a existir para cumprir funções específicas. Que funções? Aí cabe-nos estuda-las. Neste momento auguro que a função seja apenas comercial. O problema também não é com a privatização em si. Grandes universidades como a Oxford têm parte de seus serviços privatizados. Há gente com dinheiro, filantropos e não só, que acha que investir em universidades é um bom negócio. E isso em si não é o problema, pois não se distorce na essência a vocação da universidade. A vocação da universidade não se subordina ao imperativo do lucro a todo custo. Para que isso ocorra é preciso um contexto institucional claro (regras) que proteja a universidade. O problema como dizes, e eu concordo, é o contexto institucional em que essa vontade de investir no ensino ocorre no nosso país. No nosso país isso está a conduzir a distorção do produto que é a universidade. Um contexto institucional pouco claro e desregulado como o nosso confunde privatização com “comercialização a vulso” e promove a Macdonalização do ensino superior. A liberalização, argumento sobre a qual assenta a tendência para a comercialização no nosso país, não é um processo necessariamente desregulado na sua essência. A desregulamentação é uma característica típica dum contexto institucional em que se iniciou a privatização do ensino sem noção clara do que se queria resolver com essa solução. Privatiza-se porque se privatiza! Agora que a privatização está virar comercialização – avulso do ensino -ninguém sabe como regular esse processo. A solução é partir para mais soluções impensadas, ou mimeticamente copiadas de outros contextos. Neste caso institui-se, por exemplo, uma unidade de controlo de qualidade e acreditação de cursos no ministério da educação e cultura. E aí se pode perguntar. Qualidade? De quê? O problema da privatização (comercialização na verdade) está a ser –inadvertidamente formulado como sendo o da qualidade e não o contrário. Enfim, é essa comercialização, Macdonalizada, que faz com que a gente confunda por motivos de marketing produtos distintos. Na última postagem respondo a tua questão sobre como devemos chamar estas instituições. Na verdade não coloca as coisas nesses termos. Estou preocupado com o tratamento que as devemos dar, mais do que com o seu nome. Aliás o simples facto de eu as designar de pseudo-universidade as coloca num lugar distinto da universidade.

PS: Neto enviei-te um e-mail há alguns dias e não tive a tua resposta.
Estás a usar o yahoo ainda?