Por ser sexta-feira deixo-vos mais um texto para ler durante o final de semana. É uma breve reflexão na sequência dos Ecos da Sociologia Publica em Moçambique. Resolvi dotá-la de um título diferente por trazer elementos epistemológicos. Devo informar que estes artigos não devem ser interpretados no contexto das querelas sobre o intervencionismo aqui no blog. No entanto, é uma reflexão decorrente dessa experiência, sem no entanto pretender remeter para aquelas.
Um reflexão epistemológica[1]
A medida que decorria o debate na blogosfera sobre intervencionismo (engajamento) critica social e debate de ideias apercebi-me que os apelam ao intervencionismo se posicionam como “defensores dos deserdados”. Achei essa atitude interessate. Pareceu-me até que a aceitação do que diziam assentava precisamente no impacto psicológico que essa postura “moral” representava para alguns. Funcionava como uma espécie técnica de autorização. Portanto, o que era dito era avaliado não pelo mérito da questão, mas pelo peso moral em função de em nome de quem era dito. Os deserdados. Alguns de nós fomos considerados de insensíveis e indiferentes a sorte dos deserdados, por estarmos feitos com o regime do dia. Não viria problema algum nessa postura se aquela assentasse apenas num princípio moral, se se afirmasse e legitimasse como tal. Não estou a sugerir que os princípios morais que informam as posturas dos académicos, em particular, justificam tudo e não são discutíveis. No entanto, tenho para mim que esse é campo privilegiado da política ou melhor da filosofia moral da acção política. Faz todo sentido, para o político, discutir o mérito ou não da sua postura em relação aos deserdados. Esse é também o conteúdo da política. Todavia, a questão que quero levantar é de outra ordem. É uma questão, se quisermos, epistemológica. É epistemológica porque se questiona sobre princípios teóricos e metodológicos de produção de conhecimento. A intenção não é cingir a reflexão sobre aspectos meramente epistemológicos. Na verdade o assunto ainda é a postura, em particular, dos sociólogos em relação às causas que defendem. Com que estatuto o sociólogo se outorga a prerrogativa de sair em defesa dos deserdados? Que pressupostos – epistemológicos ou morais – informam essa decisão? Existe algum preceito teórico ou metodológico da disciplina que sanciona a postura do sociólogo em relação aos deserdados? Se me preocupasse com a sorte dos herdeiros, o meu trabalho seria menos sociológico? Existe algum lugar privilegiado na observação dos fenómenos sociais, que se revela ao sociólogo bem intencionado? O que é ser bem intencionada na ciência? Ou melhor, quando é que se é, cientificamente, bem intencionado? A minha ingenuidade académica faz-me crer que é a busca do “rigor científico” a maior tarefa do sociólogo. Quando intervêm publicamente, como defende o Norueguês Vilhelm Aubert, reconhecido sociólogo do direito, o mais importante é fazê-lo para reforçar e defender a racionalidade no discurso público. Como se pode fazer isso senão por meio do debate critico de ideias? Não é tarefa fácil, mas ninguém a anunciou assim. Reconheço, por exemplo, que muitos somos tentados a fazer da sociologia uma moeda de troca como denuncia, Bryian Turner. Segundo Turner, dada a estrutura sociológica do mercado académico, os sociólogos são forçados a viver como comerciantes. O alto nível de competitividade – e hoje notasse que em Moçambique começam a surgir todo tipo de sociólogos – leva-os a fazer tudo em busca de emprego, prestigio ou mesmo segurar audiência. Essa tendência acaba levando os sociólogos a inventarem abordagens que as denominam de sociológicas mesmo que na sua essência sejam precisamente o que não define o procedimento do fazer sociológico. Como podemos interpretar uma “Sociologia de Intervenção Rápida”, por exemplo? Qual é seu objecto de estudo? Qual é seu campo de estudo? Quais são os seus instrumentos teórico metodológicos? Quais os seus referenciais teóricos? Um estudo, se a memoria não me falha, nas Filipinas, revelava que eram precisamente os sociólogos quem mais distorciam o ethos da sua profissão (disciplina). Um das formas dessa distorção é apresenta-la como uma instituição de solidariedade e caridade. Confunde-se assim sociologia com a assistência social. Antes de iniciar as aulas tenho o hábito de pedir aos meus estudantes para que escrevam uma página sobre as suas expectativas em relação a disciplina e porque optaram pela sociologia. Invariavelmente, a resposta é de que gostam de trabalhar com pessoas, querem ajudar as pessoas, aos pobres, as crianças. Existem aqueles outros, que sabem que a ONG é que está dar. O.N.Gizam-se. Com seu sentido de oportunidade querem criar suas ONG’s com fins manifestamente filantrópicos para prosperar na indústria da caridade. Digo-os de imediato que o curso de sociologia não é para formar assistentes sociais e que podem estar no lugar errado. Quando aparecem sociólogos consagrados a reforçar essa imagem distorcida da sociologia como disciplina filantrópica a coisa se intrica ainda mais. Não me vou debruçar, aqui, sobre o despropósito de que os esquerdistas são os verdadeiros sociólogos. Essa foi a perdição de Marx nas suas “aventuras contra o Barão de Münchhausen”. Não preciso repetir que para Marx o proletariado se encontrava numa posição (perspectiva) privilegiada na montanha que lhe permitia o acesso a “verdade”. A verdade que o levaria a tomada de consciência da sua missão história. Uma missão que ele anuncia bem na sua segunda de suas onze teses contra Feuerbach: "A questão de saber se ao pensamento humano pertence a verdade objectiva não é uma questão da teoria, mas uma questão prática. É, portanto, na práxis que o ser humano tem de comprovar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o carácter terreno do seu pensamento". Para concluir na última tese: "Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de diferentes maneiras; a questão, porém, é transformá-lo. Defendi, e ainda não tenho razões para mudar de posicionamento, que não existem lugares epistemologicamente privilegiados para estudar o social. Afirmar isto não significa recusar que o nosso olhar, a nossa preferência, a nossa posição teórica e metodológica na produção de conhecimento e até a finalidade do nosso produto não é sociologicamente condicionada. Controlar e reduzir ao mínimo possível os efeitos desses factores sociológicos é uma das prerrogativas da reflexão metodológica. Como podemos produzir um conhecimento cuja validade e fiabilidade transcende os limites impostos pelas nossas condicionantes sociológicas de raça, género, classe, e por ai fora? Esse é o desafio metodológico que os que advogam o intervencionismo tentam evitar. Colocam a legitimidade da questão moral, acima da legitimidade epistemológica. Mais pernicioso ainda é quando a postura moral é apresentada mistificadamente como sendo postura epistemológica. [Continua].
Um reflexão epistemológica[1]
A medida que decorria o debate na blogosfera sobre intervencionismo (engajamento) critica social e debate de ideias apercebi-me que os apelam ao intervencionismo se posicionam como “defensores dos deserdados”. Achei essa atitude interessate. Pareceu-me até que a aceitação do que diziam assentava precisamente no impacto psicológico que essa postura “moral” representava para alguns. Funcionava como uma espécie técnica de autorização. Portanto, o que era dito era avaliado não pelo mérito da questão, mas pelo peso moral em função de em nome de quem era dito. Os deserdados. Alguns de nós fomos considerados de insensíveis e indiferentes a sorte dos deserdados, por estarmos feitos com o regime do dia. Não viria problema algum nessa postura se aquela assentasse apenas num princípio moral, se se afirmasse e legitimasse como tal. Não estou a sugerir que os princípios morais que informam as posturas dos académicos, em particular, justificam tudo e não são discutíveis. No entanto, tenho para mim que esse é campo privilegiado da política ou melhor da filosofia moral da acção política. Faz todo sentido, para o político, discutir o mérito ou não da sua postura em relação aos deserdados. Esse é também o conteúdo da política. Todavia, a questão que quero levantar é de outra ordem. É uma questão, se quisermos, epistemológica. É epistemológica porque se questiona sobre princípios teóricos e metodológicos de produção de conhecimento. A intenção não é cingir a reflexão sobre aspectos meramente epistemológicos. Na verdade o assunto ainda é a postura, em particular, dos sociólogos em relação às causas que defendem. Com que estatuto o sociólogo se outorga a prerrogativa de sair em defesa dos deserdados? Que pressupostos – epistemológicos ou morais – informam essa decisão? Existe algum preceito teórico ou metodológico da disciplina que sanciona a postura do sociólogo em relação aos deserdados? Se me preocupasse com a sorte dos herdeiros, o meu trabalho seria menos sociológico? Existe algum lugar privilegiado na observação dos fenómenos sociais, que se revela ao sociólogo bem intencionado? O que é ser bem intencionada na ciência? Ou melhor, quando é que se é, cientificamente, bem intencionado? A minha ingenuidade académica faz-me crer que é a busca do “rigor científico” a maior tarefa do sociólogo. Quando intervêm publicamente, como defende o Norueguês Vilhelm Aubert, reconhecido sociólogo do direito, o mais importante é fazê-lo para reforçar e defender a racionalidade no discurso público. Como se pode fazer isso senão por meio do debate critico de ideias? Não é tarefa fácil, mas ninguém a anunciou assim. Reconheço, por exemplo, que muitos somos tentados a fazer da sociologia uma moeda de troca como denuncia, Bryian Turner. Segundo Turner, dada a estrutura sociológica do mercado académico, os sociólogos são forçados a viver como comerciantes. O alto nível de competitividade – e hoje notasse que em Moçambique começam a surgir todo tipo de sociólogos – leva-os a fazer tudo em busca de emprego, prestigio ou mesmo segurar audiência. Essa tendência acaba levando os sociólogos a inventarem abordagens que as denominam de sociológicas mesmo que na sua essência sejam precisamente o que não define o procedimento do fazer sociológico. Como podemos interpretar uma “Sociologia de Intervenção Rápida”, por exemplo? Qual é seu objecto de estudo? Qual é seu campo de estudo? Quais são os seus instrumentos teórico metodológicos? Quais os seus referenciais teóricos? Um estudo, se a memoria não me falha, nas Filipinas, revelava que eram precisamente os sociólogos quem mais distorciam o ethos da sua profissão (disciplina). Um das formas dessa distorção é apresenta-la como uma instituição de solidariedade e caridade. Confunde-se assim sociologia com a assistência social. Antes de iniciar as aulas tenho o hábito de pedir aos meus estudantes para que escrevam uma página sobre as suas expectativas em relação a disciplina e porque optaram pela sociologia. Invariavelmente, a resposta é de que gostam de trabalhar com pessoas, querem ajudar as pessoas, aos pobres, as crianças. Existem aqueles outros, que sabem que a ONG é que está dar. O.N.Gizam-se. Com seu sentido de oportunidade querem criar suas ONG’s com fins manifestamente filantrópicos para prosperar na indústria da caridade. Digo-os de imediato que o curso de sociologia não é para formar assistentes sociais e que podem estar no lugar errado. Quando aparecem sociólogos consagrados a reforçar essa imagem distorcida da sociologia como disciplina filantrópica a coisa se intrica ainda mais. Não me vou debruçar, aqui, sobre o despropósito de que os esquerdistas são os verdadeiros sociólogos. Essa foi a perdição de Marx nas suas “aventuras contra o Barão de Münchhausen”. Não preciso repetir que para Marx o proletariado se encontrava numa posição (perspectiva) privilegiada na montanha que lhe permitia o acesso a “verdade”. A verdade que o levaria a tomada de consciência da sua missão história. Uma missão que ele anuncia bem na sua segunda de suas onze teses contra Feuerbach: "A questão de saber se ao pensamento humano pertence a verdade objectiva não é uma questão da teoria, mas uma questão prática. É, portanto, na práxis que o ser humano tem de comprovar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o carácter terreno do seu pensamento". Para concluir na última tese: "Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de diferentes maneiras; a questão, porém, é transformá-lo. Defendi, e ainda não tenho razões para mudar de posicionamento, que não existem lugares epistemologicamente privilegiados para estudar o social. Afirmar isto não significa recusar que o nosso olhar, a nossa preferência, a nossa posição teórica e metodológica na produção de conhecimento e até a finalidade do nosso produto não é sociologicamente condicionada. Controlar e reduzir ao mínimo possível os efeitos desses factores sociológicos é uma das prerrogativas da reflexão metodológica. Como podemos produzir um conhecimento cuja validade e fiabilidade transcende os limites impostos pelas nossas condicionantes sociológicas de raça, género, classe, e por ai fora? Esse é o desafio metodológico que os que advogam o intervencionismo tentam evitar. Colocam a legitimidade da questão moral, acima da legitimidade epistemológica. Mais pernicioso ainda é quando a postura moral é apresentada mistificadamente como sendo postura epistemológica. [Continua].
1 comment:
Discordo de sua visão sobre a relação entre legitimidade epistemologica e legitimidade moral, pois creio que nas ciencias sociais um conhecimento moralmente acrítico é simplesmente incompleto, muitas vezes deixando nas entrelinhas um posicionamento moral que deveria ser delineado explicitamente e posto à prova do debate intelectual. Todavia, é bom fazer como você indicou, isto é, distinguir os dois níveis, moral e epistemológico, distinção que é um pressuposto para a clareza do discurso científico.
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