Monday, January 21, 2008

Sociologia para os deserdados![2].

Prossigo com a série sobre a Sociologia para os deserdados que iniciei aqui.


Uma reflexão epistemológica [2]

O lócus de enunciação e a empatia com os subalternos!

Se não existe lugar de observação neutro, também não existe um lugar de enunciação neutro. Os sociólogos, em particular, falam sempre de um lugar. Admitir isso, não implica, no meu entender, que o que vem a seguir é apenas anunciar de que lugar se fala ou em nome de quem se fala. Uns optam, infelizmente, pelo caminho mais fácil da tomada de partida. Como não é possível ser neutro, então, que prevaleçam princípios morais - ficar do lado dos deserdados - como critério de validade. Este tipo de posicionamento surge em diferentes contextos de produção de conhecimento. Os Estudos Subalternos da América Latina, por exemplo, procurou e desenvolveu toda uma “ideologia epistemológica” que diz aproximar ou pelo menos estabelecer uma certa empatia entre o pesquisador e os “ditossubalternos. Se a simpatia com os deserdados conduz a produção de uma “epistemologia de caridade” – acto político e não cientifico – seria possível algum tipo de empatia que nos permitisse produzir uma epistemologia para estudar os deserdados? O grupo acha que sim. Pessoalmente tive contacto com este grupo no Brasil através de alguns dos seus membros e defensores asserimos.
O princípio de divisão e classificação do mundo social é a ideia da “diferença colonial”. A diferença colonial é definida como sendo o espaço onde emerge a colonialidade do poder. A diferença colonial, conforme caracterizada por Mignolo, um dos apóstolos deste grupo, é também um espaço onde as histórias locais que inventam e implementam projectos globais encontram aquelas histórias locais que os recebem; é o espaço onde os projectos globais são forçados a adaptar-se, integrar-se ou onde são adoptados, rejeitados ou ignorados. Enfim, a diferença colonial no/do mundo colonial/moderno é também o lugar onde se articulou o “Ocidentalismo”, como imaginário dominante do mundo colonial/moderno. Este grupo de estudos faz todo um esforço teórico de produzir esta classificação de lugares sociais imaginários, eixos que dividem os dominantes e os subalternos no sistema mundial moderno. A sugestão seguinte a di-visão do mundo social entre dominados e subalternos é uma critica dirigida a epistemologia, considerada, ocidental. A crítica refere-se ao lugar de enunciação. É um mito perverso, dizem, a ideia ocidental/masculina de que se pode produzir conhecimento que não é situado, localizado, neutral e universalista. Segundo este grupo é preciso reconhecer que, enquanto académicos, sempre falamos de algum lugar específico em termos de género, raça, classe e hierarquias sexuais de uma região no sistema mundo moderno. O nosso conhecimento é sempre um conhecimento situado nesses termos, mas para além disso situado em função do eixo colonial/ subalterno.
Toda esta estoria conduz o grupo a procurar um lugar de enunciação emancipatório para aqueles que estão do lado subalterno. Falar do lado subalterno da diferença colonial força, na sua óptica, a olhar o mundo a partir de ângulo e ponto de vista critico da hegemonia. Falar do lado subalterno pressupõe, então, fazer-se um esforço para produzir um pensamento liminar. O lócus fracturado de enunciação define o pensamento liminar como uma reacção a diferença colonial. Assim, argumentam que a diferença colonial cria condições para situações dialógicas nas quais se encena, do ponto de vista subalterno, uma enunciação fracturada, como reacção ao discurso e a perspectiva hegemónica. O prosseguimento dessa proposta culmina com a proposta de um “pensamento fronteiriço” ou duma “epistemologia de fronteira”.
Tive a ocasião de perguntar a um dos apóstolos desta doutrina quem lhes conferira o mandato de falar no lugar dos subalternos? Podia fazer a mesma questão aos nossos defensores dos deserdados? A reposta foi de que não o faziam por simpatia, mas empatia. Se fosse cínico diria que ninguém se define como deserdado. Poderia aventar que não existe como alguém ser representante (como acontece na politica) dos deserdados sem poder ter uma experiência existencial de deserdado. Não há como incorporar a voz do deserdado se deserdado não se é e nunca se foi. E em ciência, não existem mecanismos de delegação de poderes como ocorre nos sistemas políticos. Com que legitimidade se fala ou se sai, epistemologicamente, em nome dos deserdados? Como é que um sociólogo sente a fome de um faminto? Representa-a teoricamente? O deserdado não existe em si, por si e para si. O deserdado só existe numa relação que se estabelece com seu criador. O conjunto de acções que justificam a acção (moral) do intervencionista pode criar sociologicamente a categoria social do deserdado. Essa produção de categorias socias subalternas como, a dos deserdados, por exemplo, pode ter fins inconfessáveis. Justificar e legitimar a intervenção e acção politica mistificada com a legitimidade de conhecimento sociológico pode ser uma delas. Porque não? Durkheim, esse pai da sociologia que não preciso apresentar, estabeleceu nos primórdios do século XIX que as divisões e distinções de ideias se tornam conhecimento somente quando são sistematizadas e conectadas umas a outra i.é., quando se tornam esquemas de classificação. Uma coisa é produzir categorias sociais, enquanto esquemas de classificação e por consequência de produção de conhecimento – um acto puramente epistemológico, outra coisa bem diferente – é produzir essas mesmas categorias para a intervenção social com intuito de transformar a sociedade – uma acção deliberadamente politica. A primeira produz ciência, a segunda quando muito pode ser uma espécie de "epistemologia da caridade".[Não decidi ainda se esta série vai continuar].

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