Este Livro do professor Rafael da Conceição foi lançado há já alguns dias em Maputo. Infelizmente, a distância que me separa fisicamente de Maputo não me permitiu lá estar para adquirí-lo. Li, no entanto, a apresentação do lirvo pela pena de JPT e achei que merece, ainda que tardiamente, o espaço que lhe dedico. Espero ir a tempo de conseguir um exemplar. Se depender do que se diz do hábito de leitura ds Moçambicanos deve sobrar um para mim. Leiam a "longa" mais estimulante apresentação de JPT. E, claro, procurem o livro!
Rafael da Conceição, “Lied Para Yonnis-Fred e Maelle (Paternidade, Morte e Quotidiano. Construções no Mar, em Terra e no Ar …)” (Maputo, Imprensa Universitária), apresentação do livro no V Seminário de Investigação da UEM, “A Investigação Científica na UEM e o seu Papel no Desenvolvimento de Moçambique”, 17-18-19 de Setembro de 2007Muito me apraz o hábito que Rafael da Conceição adquiriu, tal como alguns outros colegas amigos, esse de me dar a ler os esquissos dos seus textos, convidando-me para discussões pré-publicação. E agrada-me pois é o autor, tal como esses alguns outros, avesso aos meros elogios, entendendo-os aliás como apenas formuláveis sob a forma da contra-argumentação.Coisa em cúmulo no caso presente, pois a minha primeira leitura deste “Lied Para Yonnis-Fred e Maelle (Paternidade, Morte e Quotidiano. Construções no Mar, em Terra e no Ar …)” provocou-me discordâncias com o conteúdo e a forma, tendo-se-lhe seguido acesa conversa, que a algumas ultrapassou e a outras aprofundou [e dentro destas sublinho a minha total distância com a concepção antropológica hobbesiana que o autor perfilha]. Conversa a qual logo implicou a minha convocatória para esta apresentação. Refiro esta nota pessoal pois tal não só denota o ethos académico do autor, afinal bem raro, como é ainda corolário de um dos eixos deste livro – a explicitação de que, sendo da ontologia do pensamento interpretativo a sua diversidade, o nosso papel enquanto antropólogos, entenda-se como intelectuais, é o de pensar inter-diferenciadamente e fazer falar diferentemente. Sublinhe-se isso não apenas como postura ética mas também epistemológica, pois se somos nós analistas das identidades sociais somo-lo enquanto analistas das alteridades sociais, destas últimas nos alimentando e ainda fazendo-as falar, delas esforçados tradutores e desejavelmente não traidores.Referi o meu desconforto inicial face à forma do texto. Sei hoje que foi ele um mero reflexo condicionado, espontâneo, produto de um “academiquês” (auto)censório. Lembro-o pois cumprindo-me agora apresentar o livro alerto para que a sua riqueza é também este carácter de texto fragmentário, aberto, explicitamente inconclusivo. E assim desafiando-nos durante a sua leitura a uma reflexão constante e indefinitiva – não assume a retórica do fechamento conclusivo, apela ao conforto do confronto, implica a felicidade da indefinição, o que lhe advém desta liberdade reclamada, simulando até uma nudez pré-retórica, por via de uma não-linearidade argumentativa (e até pictórica). Recordo esta dimensão formal do texto por duas razões: - face a tal propósito do seu autor não me abalançarei aqui a um resumo, apenas procurarei sublinhar alguns dos seus pontos (cuja economia de escolha se prende, inclusive, com o contexto muito particular desta apresentação); - e também porque esta sua dimensão ensaística surge libertária (pela qual a forma se assume como conteúdo), associada a um dos argumentos centrais do livro, o do regresso da emoção ao discurso científico. Entenda-se bem, não estamos no pequeno domínio do apelo à adesão ideológica (mais ou menos revolucionária ou contestatária) na ciência social, mas sim à afirmação da necessidade de um profundo compromisso pessoal, do nosso interior, no esforço de reflexão. E com esta dimensão Rafael da Conceição recupera, à sua maneira e no seu tempo, um ser emotivo que está no cerne da inicial escrita antropológica, dos nossos pais fundadores. Esta “Lied para Yonnis-Fred e Maelle”, esta canção para os filhos do autor, ancora-se na constante emotividade das primeiras reflexões antropológicas, da qual só as críticas anacrónicas ou as cegueiras preconceituosas se podem alhear (talvez porque incapazes de encontraram a emoção no esforço racionalizador, e nas formas que este assume, no fundo elas próprias reproduzindo a dicotomia Razão-Emoção que julgam e querem criticar). Ancora-se pois nessa emoção espantada que entrevemos em Morgan, sorrimos em Frazer, descobrimos na aparente secura de Boas e, já num outro plano, nos encantamos nas etnografias de Malinowski, esse Conrad antropólogo, como se crismou. O autor recolhe aqui a tradição conversacional dos textos antropológicos (matriz metodológica da nossa produção, enquanto molde da observação participante, recorde-se), particularmente celebrizada nos “Metadiálogos”, essa deliciosa pequena obra que o grande antropólogo e etólogo G. Bateson encenou com a sua filha criança (ela própria futura antropóloga). Mas esta teatralização de uma inicial “carta aos filhos” não aparece aqui como um discurso “meta”, é sim um pungente legado aos seus filhos, deixando-lhes (e tão em vida) um quadro pessoal de problematização, téorico-ético-deontológico, portanto metodológico. Qual de nós pais não acalenta tal sonho comunicacional com os seus, filhos ou pares? Mas a grandeza do texto radica, em meu entender, no facto de que este legado é transmitido aos filhos (e, portanto, a nós) não como lição mas sim como discussão: ao dizer-nos que [e cito] “Eu já não tenho grandes preocupações pela coerência porque sei que isso é humanamente impossível (…) Se a coerência existe ela é apenas formal. Existe apenas a vida e a necessidade de a viver plenamente. A coerência só deve existir quando se trata de termos que dar aos outros uma imagem deturpada de nós-mesmos, uma imagem falsa, uma “boa” imagem, uma imagem de segurança, de autoconfiança e autosuficiência, mas ela não tem nada a ver com as necessidades de cada ser humano. (…) A coerência seria então uma forma de nos obrigarmos a aceitar aquilo que é inaceitável para os outros.”, o autor radica um método de reflexão numa específica concepção de real, ancora uma forma de pensar num carácter do pensado, alertando-nos pois para o facto, para tantos não-óbvio, de que a realidade não é algo coerente, sendo esta coerência (afinal) apenas uma imposição discursiva dos locutores. O que implica, claro, a vacuidade de um qualquer pensamento que se queira e/ou óbvio.Quero aqui levantar duas questões suscitadas no livro, entre tantas outras, desejando-as aperitivo da vossa leitura: a reflexão sobre a morte, e suas implicações; e a reflexão sobre a antropologia (e as ciências sociais). Questões que surgem ligadas …Durante a sua escrita o livro foi-me sendo anunciado como uma abordagem antropológica à morte. Confesso que logo imaginei uma tanatologia, algo que por enquanto surge deficitário, para não dizer inexistente, no seio das ciências sociais moçambicanas (com excepção de alguma etnografia esparsa ou secundária sobre rituais funerários e sobre a recorrência cosmológica dos cultos de antepassados, sempre presentes nas religiões espiritualistas, bem como nos monoteísmos universalistas com presença em Moçambique). Mas não foi esse o resultado, para minha inicial desilusão, que não final. Com efeito a surpresa que estava guardada é esta, a de se ligar uma miríade de questões, e em particular estas acima referidas (o estatuto das ciências sociais e abordagem existencial à morte) naquilo a que eu (e aqui apelando um pouco ao quadro teórico-filosófico do autor) me atrevo a chamar, de modo até provocatório, como uma Economia Política da Morte.Recuperando uma visão que considera heideggeriana, a que vincula o homem a uma condição de “um ser-para-a-morte”, o autor reclama a indissociabilidade da vida e da morte, esta como uma continuidade e nunca uma ruptura, entendendo-a assim: “é a minha única companheira na Vida e também porque sei que ela é o meu verdadeiro e único endereço” - numa acepção que traduzo como um historicismo que nos dirige para uma escatologia da negação, pois sendo a vida um ser-para-a-morte ela torna-se um Ser-Para-O-Nada, este nada sendo a morte.Di-lo através do poema, aqui feito epígrafe, “A Nossa Morte é a Vida que Vivemos” de Andrea Paes (recentemente estreada na poesia com o livro “O Mar Verde de Mim e as Terras Brancas Sem Açúcar”, assim seguindo as pisadas de sua mãe Glória de Sant’Anna), no qual se realça interacção inultrapassável do nosso ciclo biográfico, essa presença quotidiana e constante do ocaso …Passeio de mãos dadascom a morte.Passeamos no silêncioda nossa uniformidade [incorrigível.Eu, dentro da minha vontade de viver.Ela, dentro da vontadede me ter.E sorrimos, porque sabemosda força imanente e[inexorávelde que ambos dependemosEsta constância da morte, essa siamesa da acção hermenêutica direi eu, tem corolários. E se estes podem ser considerados, por alguns leitores, como existenciais ou morais, parece-me a mim que são eles também afirmados como epistemológicos, pois ela exige-nos um despojamento que é também intelectual. Di-lo assim Rafael da Conceição, no seu poema “Liberdade”, também este em epígrafe:De que nos vale então a vaidade?De nada, senão para julgar a saudade à espreita da Morteque desponta altiva e insaciável[e inadiável e desconfortávelMas mais uma vez o autor foge ao linear, abre-nos a porta para entendermos a suprema complexidade do acto de ser (de ser intelectual então). Se a morte está, se a morte é, ela aparenta então implicar o tal despojamento, imprimir um dever-ser, uma filiação ética da atitude intelectual. Mas, sendo que “a morte acontece quando o corpo nos trai definitivamente” logo nos diz o autor da necessidade de pensarmos a traição, que identifica e considera tão central nas relações sociais. Assim sendo, essas traições constantes surgem como uma sucessão de “pequenas mortes”, incontornáveis, obrigando-nos a vivê-las como agentes, comprovativos da nossa impotência, espelhos da nossa hipocrisia, impostura, demagogia. Sim, o autor apela (aos seus filhos e não só) a que se cumpram valores éticos. Mas sabe da omnipresença destas pequenas mortes quotidianas, destas nossas traições, desta nossa obrigatória incoerência. E, de súbito, regressa à teorização sobre os “grandes homens”- matéria da filosofia e das nossas ciências – deixando-nos claro que estes o são porque cometem a(lguma) grande traição. Ou seja, são “grandes homens” porque têm a consciência da irredutibilidade do real aos princípios morais, concluo eu. Tal como o autor nos quer dizer, através desta reflexão epistemológica a propósito das mortes (as pequenas) e da morte (aquela que é o Nada).Mas este não é apenas um discurso sobre os constrangimentos da apreensão intelectual do real. O autor entende que a constituição histórica da ruptura entre vida e morte - no fundo aludindo ao processo do “desencantamento” moderno que Weber identificou -, implica o evitamento actual [e globalizado] desta. Algo que deriva do facto de que neste enquadramento cosmológico o discurso sobre a morte não cumpre a ambição (desmedida e impossível) do domínio racional e afectivo sobre ela, função desejável de qualquer discurso possidente, como o identificou Foucault. Resta-nos assim, e aqui segue o grande antropólogo tanatologista Louis-Vincent Thomas, a ilusão da vida, impressa pelos poderes sociais (políticos e económicos), produzida num “deslocamento da concepção geral da morte”, a qual surge já não numa perspectiva sacralizada de vida eterna, mas sim nesta pressão pela felicidade terrena (denunciada por Pascal Bruckner, aduzo eu), de produção e consumo material e simbólico que procuram esconder a angústia do Nada, esse que não só se avizinha como é mesmo vizinho. É nesse sentido que falo deste como um texto de Economia Política da Morte, quando define ser o evitamento discursivo e vivencial desta, a sua aparente substituição por condutas existenciais (económicas e políticas) desprovidas de sentido positivo, assim desprovidas de efectiva materialidade, pese embora o produtivismo que as anima. Conduzindo assim ao final da Modernidade, como refere com Touraine “A afirmação mais forte da modernidade era que nós somos o que fazemos; a nossa experiência mais viva é que nós já não somos o que fazemos, que somos cada vez mais estranhos às condutas que nos impõem os aparelhos económicos, políticos e culturais que organizam a nossa experiência …” (Alain Touraine, 1997). Sumarizo pois o argumento deste modo: a desmortificação do Homem que o desencantamento capitalista trouxe implica o sem-sentido da prática, encerrando assim o olhar moderno, racionalizador, e por isso mesmo também encantatório.Que fazer, como buscar o sentido? O autor recorda com Sollers que deste modo estão os mortos em perigo, em especial os mortos pensadores, esses que subsistem aqui entre nós mas aos quais somos surdos, agora que “cheios de arrogância com o nosso calendário político-económico e o nosso espírito de empresa globalizada”, no fundo, na arrogância do pensamento único tecnocrático que vai vigorando, impante na sua unicidade e pretensa “naturalidade”. Estamos pois – e ainda que Rafael da Conceição não refira o termo -, numa crise, uma crise de subordinação intelectual. Se acima referi a sua invectiva para o regresso à emoção intelectual aqui lhe associo uma outra, o seu apelo à multiplicação intelectual, necessária à busca de sentido. Como o fazer?Vai longa esta intervenção, e apenas lhe posso tentar esboçar o argumento. Como qualquer antropólogo o sabe, em alturas de crise invocam-se os antepassados (sejam estes o Deus, os deuses, os espíritos, as tradições ou os valores), esses mortos sempre entre nós. E é isso que Rafael da Conceição realiza, convoca os seus mortos, aqueles que lhe formaram o pensar e o sentir, convoca a morte, nela se embriaga, para pensar a vida: entre tantos outros surgem no conciliábulo a cadela Bapsy, o velho e cansado guarda Matavele; os colegas José Negrão, Christine Messiant, Christian Geffray; o companheiro Carlos Cardoso; e os velhos mestres Bourdieu, Althusser, Derrida, Meillassoux. Estes mestres regressam, são as suas vozes escutadas com óbvia reverência, iluminando – não há aqui preocupações escolásticas, não se trata de traçar geneologias das ideias e posições. Acontece cerimónia, com frases e discursos polissémicos, por vezes até paradoxais – como sempre o é a comunicação com os antigos.Nessas palavras se anima, ou melhor dizendo, se reanima um conjunto de visões. Que o sentido do real, e as nossas possibilidades de o entender, passa pela sua desnaturalização, e portanto pela recusa do discurso único, das soluções sabidas. A certo momento é a cava voz do falecido Derrida que é escutada, reclamando uma universidade que seja uma comunidade de saberes pautada por um espírito livre e universalista, um lugar de resistência à homogeneização e ao dogmatismo – e eu, ouvindo outros antepassados (os meus), acrescentar-lhe-ia a recusa da vã tecnocracia globalizada que apela ao ensino do “saber-fazer” tornado adversário, até oposto, do saber-pensar, entenda-se este como “saber-perguntar” [esse “saber-fazer” tão em vigor que na pedagogia do hoje se passeia sempre apoiado na irreflexiva prótese power-point] – um lugar universidade, insiste Derrida e com ele o autor, que não submeta a investigação aos cálculos da rentabilidade (económica) imediata, reclamando a autonomia do campo universitário, do pensar intelectual.Antropólogo, Rafael da Conceição não esquece a crítica das divisões disciplinares – sabe pelo menos desde o seu falecido Bourdieu que estas pouco mais são do que obstáculos sociológicos à constituição do saber, à interrogação do real. Mas sabe(mos) também que são elas palco da luta pelo controle de recursos académicos (económicos e simbólicos). Daí a sua denúncia das tendências tecnocráticas, de retórica quantitativista, que se acotovelam em algumas ciências sociais, em particular sociológicas, quantas vezes auto-reclamando a sua função de ciências instrumentais (e eu, por meu lado aduzo, auto-reclamando-se ciências instrumentais seja dos poderes instituídos seja das contestações instituídas). O libelo do autor é longo mas a crítica que nos é aqui legada, os princípios éticos afirmados são também metodológicos. É na invocação do mais-velho Claude Meillassoux, das suas passagens nos anos 70 e 80 por Moçambique, que Rafael dá pistas mais do que substantivas para o caminho do pensar, autónomo, um pouco livre, des-naturalizador, desencantatório, encantador. Ouçamos esse velho, aqui trazido“ … enquanto investigadores é necessário que vocês compreendam a importância, a significação e o alcance dos dados que vocês estão a recolher. (…) Como eu disse em Maputo, vocês não são inquiridores vocês são investigadores. Ao inquiridor diz-se “traga-me tal ou tal informação” enquanto o investigador deve necessariamente saber que tipo de informação deve recolher (…) A diferença entre um inquiridor e um investigador é que o investigador é também o teórico da sua pesquisa. (…) É por isso que os investigadores trabalham na base de um guia de entrevistas enquanto os inquiridores trabalham na base de questionários. (…) São vocês mesmos que devem pensar nas questões a levantar.”