Friday, July 20, 2007

Da democratização da esfera da vida[1].

Há dias escrevi, aqui, o que penso sobre o que designei fenómeno DAMA DO BLING. Nas últimas duas semanas tenho recebido e-mails, lido nos jornais e no meu espaço privilegiado de busca de opiniões, a blogosfera, lido artigos com as mais variadas inclinações em termos de análise da actuação e postura artística da cantora DAMA DO BLING. Qual o significado sociológico deste fenómeno? O que é que está acontecendo na nossa sociedade do qual ainda não nos demos conta? No artigo que escrevi referi a necessidade de prestarmos atenção ao que considero ser a profunda transformação social que ocorreu e ainda ocorre nas esferas privada e públicas da nossa sociedade. Apelidei esse fenómeno de revolução silenciosa. No meu entender, e hipoteticamente falando, fenómenos como o da Dama do BLING revelam um processo profundo de democratização da esfera privada das pessoas e que se está a repercutir no espaço público. A família está devolver para sociedade aquilo que a sociedade lhe ofereceu e vice-versa.

Vou contar uma breve história, verídica, para clarificar o que pretendo dizer. Não sei se o fenómeno ocorreu noutras partes do Pais. Em Xai-Xai, nos anos oitenta e princípios de noventa ocorreu um fenómeno sociologicamente interessante. Suicídios em série. Na altura, eu, não conhecia uma teoria sociológica sequer. Não sabia que existia o clássico Durkheimiano, O suicídio. Dizia, nessa altura houve uma série de suicídios sucessivos de jovens raparigas com idades entre os 14 e 20/5 anos (por estimativa). Muitas delas tomaram doses excessivas de comprimidos, o famoso cloroquina (Quinino) com manifesta intenção de por termino as suas vidas. No desabrochar da sua juventude e da puberdade, conjecturo que sua morte era consequência de uma sociedade fechada por causa do controle social cerrado da família sobre seus membros. Por exemplo, namorar era um sacrilégio! Ai de quem engravidasse ou se deixasse engravidar por essas alturas! Para evitar, o tribunal caseiro regido pelas leis da moral familiar, enfrentar os pais, o seu castigo e a sanção da sociedade, essas meninas, de tenra idade, optavam por retirar o que de mais preciso tinham: a vida! Quantas colegas não perdi por que o pai soube que estava a namorar, engravidara enquanto residente no internato, ou coisa parecida? Demorar numa festa, para a qual se tinha pedido autorização, com não sei quanto tempo de antecedência, e com hora de regresso a coincidir com a hora do início, era motivo de pânico! Enfim, as razões por detrás desses suicídios, quando por exemplo cartas se encontrassem, eram quase sempre ligadas a esta relação entre o controle familiar e o desejo de liberdade, entre uma moral rígida e o indivíduo em busca de si.

Não gostaria de me alongar aqui referindo-me e descrevendo o lado público e politico do fechamento dessa sociedade. Foi naquela altura em que namorar, abraçar, beijar na rua era considerado corrupção. Podia se passar a noite inteira na esquadra da polícia, limpando casas de banho, por conta de um beijo. E no dia seguinte: o que dizer aos pais que como tortura-dores já te recebiam de sinto em punho? Para sair de casa para uma festa de um amigo o indivíduo passava por uma “burocracia familiar” incrível. Não sei se se podia chamar a isso excesso de normas, mas que havia algum isso é indiscutível. Se em contextos anómicos os suicídios são proporcionalmente superiores aos que ocorrem em contextos de normalidade, o que acontece quando a norma excessiva sufoca, poderíamos nos questionar?

Valeria a pena pôr a prova a tese Durkhemiana segundo a qual quanto maior a coesão social menor taxas de suicídio de registam. Poderíamos testar a hipótese contrária de que o excessivo controle social também tem a sua cota de suicídios. Aquelas meninas suicidaram-se? Cada sociedade suicida por ano um certo número dos seus indivíduos, dizia Durhkeim. Certamente, algumas dessas meninas, se não todas, foram vítimas da sociedade em que viveram.

Aquela sociedade não existe mais, deu lugar a actual. Comparativamente a aquela, esta é mais aberta. Como referi, essa abertura resulta de um processo de mudança social que ainda precisa ser estuda. Uma hipótese de trabalho a considerar seria a de que simultaneamente ao processo democratização política do país ocorria a democratização da esfera da vida. Houve mudanças significativas na qualidade oculta de toda a vida pessoal e das instituições privadas onde esta se desenrola, como a família. Pense se por exemplo na normalidade, outrora anormalidade, da maternidade solteira.

A promoção da democracia (política) e no domínio público foi paulatinamente conquistando espaço na esfera privada. Esta por seu turno retribui ao espaço público reenviando-lhe cidadãos livres, que procuram um espaço próprio de afirmação da sua individualidade. É assim que entendo e enquadro posturas artísticas e de personalidade desinibida como a da DAMA DO BLING. É por isso que temos uma DAMA DO BLING que diz querer ser o que quer ser. Que quer fazer o que gosta. Já não é aquela sociedade em que se fazia aquilo que os pais queriam que os filhos fizessem sem no mínimo negociar isso. Filhos e pais, hoje, tem que sentar e negociar o conteúdo da sua relação, o sentido do poder e de responsabilidade. É a recuperação do indivíduo, é o retorno do sujeito (actor) como diria o sociólogo Francês, talvez noutro contexto, Alain Touraine. Este processo de democratização da esfera privada e da vida pessoal é menos visível, provavelmente por não ocorrer na esfera pública, não obstante nela se reflectir, mas suas consequências são profundas. Penso que ganharíamos mais reflectindo a sociedade que somos hoje, do que esgrimindo argumentos (pseudo) moralistas como se tende fazer.

3 comments:

Anonymous said...

professor, nao sao justamente os argumentos (pseudo) moralistas e companhia lda, que nos fornecem os instrumentos para reflectimos sobre as dinamicas de transformaçao da sociedade?
Do trololo em torno da Dama do Bling tenho lido reflexoes excelentes,inclusivé as suas duas postagens!!! força professor, continuaçao de bom trabalho.

Anonymous said...

naquela sociedade, que nao existe mais as meninas suicidavam-se. nesta que exite agora é a sociedade que suicida as meninas...

chapa100 said...

patricio! excelente reflexao, em nome de uma moral que so serve para controlar e nao para dialogar temos alguns senhores e senhoras querendo impor uma ordem nao consensual. o baza baza e outros com zucuta e txuqueta, eram os na altura manifestavam a danca de luta controle do corpo. ainda bem que com esta discussao aprendemos que mocambique e um pais de muita gente, com muito valores, habitos, vidas, olhares, corpos, ...
o plural sempre foi parte de nos, no corpo ou na lingua.