Os leitores dos artigos e livros de Elísio Macamo devem se recordar do seguinte título, “Desenvolver o País com Desculpas”, posto a um de seus artigos. O artigo consta de um dos livros do autor, "Um País Cheio de Soluções", lançado em 2006 sob chancela da produções Lua, colecção meianoite. É um texto que vale a pena ler de novo. Uma das razões que me leva a sugerir a releitura deste texto é a sua actualidade. O texto debruça-se sobre um fenómeno social (comportamental) rotineiro na nossa experiência quotidiana. A desculpa. Acima de tudo o texto ensaia uma análise sociológica para esse fenómeno. Funcionalista, mas sociológica. Fica, talvez, por saber “como é possível a desculpa?”. Quais são as condições sociológicas que propiciam sua produção social? A segunda razão que me leva a sugerir este texto é que ele já está, e bem, escrito. Neste sentido pretendo sugerir aos leitores ferramenta sociológica, presente no texto, para lerem a carta que coloquei e anexo. Trata-se da carta de um estudante, do qual tratei de apagar o nome, dirigida à docente. Leiam-na e analisem.[NB:Clique na imagem para ampliar].
Desenvolver o país com desculpas
Peço desculpas aos estudantes de sociologia da UFICS pelo protagonismo negativo que vão ter aqui. Peço igualmente desculpas aos nossos linguistas por trespassar um território que eles já deviam ter explorado. Enfim, peço desculpas aos leitores por abordar uma questão que era melhor ignorar. Pedir desculpas, quer seja a propósito quer não, parece o passatempo favorito dos moçambicanos. Melhor ainda, desculpar-se e não pedir desculpas. Pedir desculpas é o que agentes da polícia de trânsito, empregados de balcão e os funcionários que atendem o público nas repartições deviam fazer, mas não fazem. E têm desculpa para isso.
Esta reflexão vem a propósito da experiência de ensino na UFICS. Onde ensino a maior parte do tempo, na Alemanha, os estudantes entregam os seus trabalhos a tempo. Há um e outro caso de atraso, mas geralmente quando é assim, o atraso é antecipado e acordado previamente comigo. Em Moçambique, é diferente. Há sempre um bom número de estudantes que não entrega os seus trabalhos a tempo e, pior do que isso, não vê a necessidade de acertar a questão comigo previamente. E isso não acontece só com trabalhos de avaliação. Acontece também com outro tipo de compromissos, por exemplo, artigos para publicação ou encontros de trabalho.
Invariavelmente, julgam ter uma boa desculpa: falecimento na família ou no círculo de amigos; malária ou outra doença; falta de acesso ao computador; rumores de que o trabalho foi desmarcado, etc. O aspecto interessante destas desculpas não está nem no tipo nem no facto de serem feitas. O interesse está na expectativa de que surtam o efeito desejado. O mais curioso ainda é que essa expectativa se confirma, vezes sem conta. As desculpas funcionam. Mais uma vez, não funcionam por se tratar de falecimento, doença ou dificuldades materiais. Isso, quando muito, só mostra a escala de valores sociais entre nós. Nem funcionam porque as pessoas se lembraram de pedir desculpas. Elas funcionam, começo a pensar, porque são um elemento central da nossa vida em sociedade em Moçambique. Sem desculpas, gostaria de sugerir, o nosso país parava de funcionar. Vou também sugerir que com desculpas, a longo prazo, o nosso país vai também deixar de funcionar.
A função social da desculpa.
O nosso país já não anda, nem desanda. Os estudantes servem-se dum lubrificante útil das relações sociais deste país. Desde empregados domésticos, passando por operários e camponeses, até aos funcionários públicos e o próprio país, investimos, em Moçambique, mais tempo, energia e criatividade em encontrar uma boa desculpa para não termos feito o que devíamos ter feito do que em tentar fazer. Há momentos em que tenho pesadelos: vejo metade da população moçambicana em cortejos fúnebres – é engraçado que ao funeral ninguém chega atrasado – e a outra metade a disputar lugar no caixão. Na pedra duma campa gigante está escrito o seguinte: “não te disse que tinha malária?”. As desculpas funcionam porque são parasitárias e fazem chantagem. Elas são parasitárias na medida em que desafiam o ouvinte ou receptor a construir ele próprio o seu verdadeiro significado. Para justificar o não cumprimento dum compromisso profissional é suficiente dizer “tive um falecimento” ou “tive malária”. Compete à pessoa a quem esta frase é dirigida construí-la como desculpa. É como se fosse uma premissa num argumento, cuja conclusão deve ser deduzida com recurso a toda competência social que um indivíduo tem. Assim, quando alguém diz “tive falecimento” a minha responsabilidade é de fazer as devidas associações: perdeu um ente querido; a sua rotina está quebrada; tem que atender a obrigações familiares; falecimento é algo muito importante na nossa tradição; se não cumprir com as obrigações familiares corre riscos metafísicos, etc. Portanto, está completamente justificado.
As desculpas fazem chantagem na medida em que transferem ao ouvinte ou receptor a responsabilidade de tirar as devidas conclusões. Quem não é capaz de tirar as devidas conclusões é socialmente incompetente. Se em resposta a alguém que me dissesse “tive falecimento” eu dissesse “estou-me nas tintas” ninguém iria aplaudir o zelo profissional que por ventura estivesse por detrás dessa reacção. Antes pelo contrário, considerar-me-iam analfabeto social, uma pessoa iletrada em relações sociais. A dedução que tenho que fazer perante as premissas apresentadas por uma desculpa é sempre: logo, está justificado. Felizardos são os estrangeiros no nosso país, cuja incompetência social lhes proteje das desculpas. O parasitismo e chantagem têm uma função social muito importante. Fazem das desculpas uma explicação. E o que está explicado, está bem. Isto tem uma longa tradição no nosso país. Pelo menos isso. Os portugueses colonizaram-nos porque não estávamos unidos; militámos na PIDE porque fomos obrigados; punimos alguém durante a luta armada porque era da linha reaccionária; metemos no campo de reeducação porque era Xiconhoca; mutilámos porque éramos contra o socialismo; queimámos porque o exército também fez; perdemos um jogo ganho com a Zâmbia porque estávamos cansados. Nos tempos de Samora dizer “insuficiências” era suficiente para explicar tudo; a falta de “condições” era tudo, como quando um camponês, ao tentar descrever-me o perfil de Jesus Cristo, disse “bom, ele não tinha condições”.
A força das normas sociais
Enquanto reflicto sobre o verdadeiro significado das desculpas esforço-me por resistir à tentação de lhes atribuir um estatuto cultural. A maior parte das pessoas com quem tenho conversado sobre o assunto não tem quaisquer tipos de escrúpulos a esse respeito. Para elas as desculpas fazem parte dum sistema cultural tipicamente africano que é, ainda para mais, responsável pelo nosso atraso. O tipo bem como o mero uso de desculpas para justificar omissões fazem parte dum sistema de valores e normas que se opõe vivamente ao tipo de sistema político e económico necessário à satisfação das necessidades básicas dos membros da sociedade. As desculpas, diriam os antropólogos, obedecem a uma lógica directa e imediata de acção (face-to-face). Elas reflectem um fraco nível de formalização.
Explicações culturalistas revelam mais sobre os preconceitos da pessoa que as faz do que sobre o assunto em questão. Não é que não tenham um cunho de verdade. É preciso, contudo, trazer esse cunho à superfície. A explicação que eu próprio encontro para a cultura da desculpa não prescinde totalmente de preconceitos culturais. Ao contrário destes, porém, ela vê os elementos culturais numa perspectiva dinâmica, como coisas que se constituem no nosso quotidiano. Noutros termos, as desculpas têm o uso que têm na nossa sociedade porque elas se revelaram úteis. Foram integradas na nossa experiência de lidar com outras pessoas, instituições e condições naturais. No processo revelaram-se extremamente úteis. A famosa frase dos anos oitenta “ganhar experiência” pode explicar o que tenho em mente.
Ganhar experiência significa duas coisas. Primeiro, significa identificar uma situação específica, isto é não confundi-la com nenhuma outra. Uma viagem para o exterior como membro duma delegação, para usar o contexto privilegiado do uso dessa expressão, não é uma viagem de sensibilização da população à aldeia comunal. Segundo, ganhar experiência significa antecipar acontecimentos. Isto é, prever a reacção dos outros e agir de acordo com essa previsão. O que dá segurança e previsibilidade à nossa acção quotidiana é precisamente esta sedimentação da experiência. É a natureza regular e padronizada de situações do dia a dia que nos permite dar o mundo por adquirido. Por norma, isto é feito por via de convenções. Ou por outra, através da nossa experiência damos à regularidade e à padronização o estatuto duma convenção. Em situações de contacto imediato, em que conhecemos muito bem as pessoas com quem estamos a lidar, basta a qualidade das nossas relações para dar força de convenção a essa regularidade e padronização. Mas como o mundo social é feito de mais do que as nossas relações imediatas é preciso um outro tipo de garantias para que as convenções sejam eficazes como tal.
É assim que para além da minha ou da palavra do leitor é necessário um mecanismo impessoal que garanta a observação duma convenção. As burocracias têm esse papel. Na realidade, todo o tipo de institucionalização de relações sociais, a saber polícia (ordem), hospital (saúde), escola (educação), sistema político (debate público), etc. constitui uma maneira impessoal de garantir a observação duma convenção que tem a sua génese na acumulação quotidiana de experiência. Quanto mais complexa for uma sociedade, maior necessidade tem ela destes mecanismos impessoais. Os apelos morais, muitas vezes informais, têm mais força de Macamo para Macamo do que de Macamo para Sousa, Capurchande, Sitoi ou Nipassa. Têm mais força no bairro do Tavene dentro de Xai-Xai do que na Mafalala, em Maputo, ou na Manga, na Beira. Têm, provavelmente, mais força no Sul do que no Centro ou Norte. E por aí fora. Ser moderno significa, na sua forma mais elementar, a simples garantia do funcionamento destes mecanismos impessoais como forma de dar maior previsibilidade ao quotidiano. A diferença entre tradição e modernidade, neste caso, e nisto os antropólogos estão mais do que certos, é a diferença entre a força duma norma social e a força dum dever. A primeira é pessoal, a segunda é impessoal. Provavelmente, o nosso problema de desenvolvimento reside justamente na tradução de normas sociais em deveres.
As desculpas fazem parte do universo cultural das normas sociais. Se eu ou o leitor não nos sentimos bem com a ubiquidade das desculpas é porque nós, muito provavelmente, observamos o critério do dever na nossa acção quotidiana. Com isto não quero sugerir que seja irracional observar o critério da norma social. Na verdade, tudo até indica que é mais racional agir assim. Em Moçambique. De cada vez que cumpro a minha palavra, muitas vezes à custa de noites perdidas e fricções familiares, surpreende-me a surpresa dos que não esperavam pelo cumprimento da palavra. Isso acontece com mais gente, mas fica mal dizer em voz alta porque atenta contra a ética dominante da norma social.
Para defender essa ética tudo vale: desde acusações de feitiçaria até ao ostracismo aberto. A questão que se coloca é de saber porque é tão ubíqua a norma social apesar de sermos uma sociedade complexa? Pessoalmente ainda não tenho resposta, apenas palpites. Suponho que a explicação deste fenómeno seja tão circular quanto vicioso o círculo da nossa existência. Predomina a norma social porque o dever ainda não se impôs; o dever ainda não se impôs porque a norma social teima em se manter bem viva. Eis um problema.
Porquê o círculo vicioso? Suponho que tenha a ver com a precariedade da nossa existência. O universo cultural do dever, no nosso país, é menos seguro e previsível do que o universo cultural da norma social. O recurso ao directo, imediato e informal constitui uma melhor economia de esforços do que o recurso ao indirecto, distante e formal. No caso concreto das desculpas, pela sua própria estrutura, elas produzem a norma social. O parasitismo e a chantagem de que vivem são parte integrante da sua economia política. Através da sua função explicativa criam as condições necessárias à sua própria reprodução. Se aceito “tive falecimento” como desculpa e explicação é porque aceito as normas e os valores que se atribui ao fenómeno aludido. Aceito fazer parte dessa comunidade moral.
Abaixo as desculpas!
Se o problema das desculpas se circunscrevesse apenas aos estudantes seria grave, mas não tão grave ao ponto de merecer a nossa atenção. Podíamos até dizer, como de certeza estarão alguns leitores a pensar, que essas desculpas é que nos tornam diferentes dos outros. De resto, dirão, somos africanos e faz parte da nossa identidade respeitar os defuntos. Sim, mas faz parte também da nossa condição humana respeitar compromissos profissionais. O que torna o problema das desculpas grave é a sua forte tendência de se tornar numa verdadeira cultura. Isto é, ao invés de se manifestar como um entre vários aspectos dum sistema cultural, como diriam alguns, desculpar-se passa a ser a marca distintiva dos moçambicanos.
Há vários exemplos disso que mostram a gravidade da questão. A atitude do ministro do
interior, a julgar pelo que foi noticiado pela imprensa, no julgamento do caso Carlos Cardoso é altamente sintomática dessa cultura. Quando Anibalzinho se escapuliu o ministro disse, segundo a imprensa, qualquer coisa como “isso acontece em qualquer parte do mundo”. Na altura, alguns observadores classificaram o comentário de arrogante. E se calhar até têm razão. Mas também pode se dizer que o ministro estava a recorrer ao grande lubrificante das relações sociais que é a desculpa no nosso país. Por mais disingénua que tenha sido a afirmação tratava-se duma desculpa no bom estilo moçambicano: parasitária e chantagista. Parasitária porque como bons cidadãos que somos devíamos ter a competência social para reconhecer que se até em países mais desenvolvidos do que o nosso criminosos se evadem como é que não se podem evadir das nossas cadeias? Chantagista porque nos convidava a tirar a conclusão de que o que aconteceu era perfeitamente normal sob pena de nos passar um atestado de loucura por expectativas exageradas.
E de desculpa em desculpa o país vai se afundando na sua própria inércia: Não temos meios; não temos fundos; o financiamento não veio a tempo; não temos capacidade institucional; não temos pessoal; faltaram viaturas adequadas; o governo não investe na nossa região; choveu muito; choveu pouco; não choveu; já era tarde; calhou mal; os outros governos africanos não nos apoiaram; não havia verba; somos pobres; as estradas estão cheias de buracos; morreu o tio do amigo do meu colega; tive malária, etc., etc. Para cada uma destas situações há todo um arsenal de explicações. O que se esquece é que uma explicação é bem diferente duma desculpa. Esta parece-me uma nota bastante negativa para terminar a reflexão. Contudo, se me ponho a procurar uma explicação para as reais dificuldades que enfrentamos no nosso dia a dia com a confusão que se faz entre explicação e desculpa corro o sério risco de apenas arranjar desculpas para desculpas.
Notícias, 14 de Agosto de 2003