O Manuel Mangue enviou-me este texto pelo E-mail. Penso que a intenção é através do deste blog fazer chegar a mais gente. Aqui está! Não vou comentar para evitar influenciar a vossa leitura. No entanto de seguida irei colocar um outro que foi reacção a este. Agradeço ao Mangue pelos textos.
País africano de língua portuguesa, Moçambique se insere no capitalismo mundial sem abolir a tradição
MANOLO FLORENTINO
COLUNISTA DA FOLHA (Folha de S. Paulo, Caderno Mais, p.7, 17/06/2007)
Disponível também em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1706200711.htm (17/06/2007).
Maputo mudou muito em quatro anos. Não que as fubicas deixem de dar o tom à frota da cidade. Mas sobram Lamborghinis, Mercedes, BMWs e Toyotas, luzentes como impensáveis ilhas em um mar de carcaças ambulantes.
Embora a decadência impere, há também novidades na arquitetura. São inúmeras as mansões futuristas, sobretudo os atrozes monstros de aço e vidro que rasgam os céus e impõem uma modernidade caricatural à promiscuidade da paisagem urbana.
Mudanças assim resultam do espetacular crescimento econômico de Moçambique. Espera-se um incremento de 8% no PIB de 2007. Mas Nampula, a mais rica Província do país, cresceu 11% em doze meses.
Toda estatística é aqui precária, e mesmo a população é estimada -obviamente, apenas o número de votantes é mais bem conhecido.
De todo modo, inflação de 3% é coisa de Primeiro Mundo, garantindo certo desfrute generalizado do boom econômico.
Um poliglota típico
A recentíssima modernidade do país desvela-se caricatural quando nos engalfinhamos com a mais precária cobertura de internet da África.
Ou ao constatarmos a imensa dependência de Moçambique para com os recursos remetidos pelos migrantes que labutam nas minas sul-africanas, a fonte da Aids que assola a população adulta. Para não falar das doações estrangeiras, cujas entradas já não envergonham os cidadãos -simplesmente os viciaram.
Tradição destruída pelo capitalismo selvagem? Bobagem.
Jacinto Salvador Tovela, 38 anos, é um moçambicano típico. Emparedado entre a tradição e a modernidade latente, seu universo é multicultural como o da maioria dos africanos urbanos -nasceu em Maputo, sendo pois fluente em xangana, ronga e português; seu pai é de inhambane, o que o levou a falar chopo; arranha o zulu, pois freqüentemente viaja para a África do Sul.
Protestante, Jacinto lê e escreve, tendo abandonado o álcool em tenra idade. Rala 15 horas por dia como motorista da Universidade Eduardo Mondlane, está conectado à web e mora na cidade-dormitório de Matola, na verdade uma das maiores favelas do mundo.
O amor por Hélia, com quem vive desde 1998, deu-lhe dois filhos. Pela família, Jacinto se rende à tradição -ou melhor, encontra na tradição a mais completa tradução da sua identidade.
O trabalho e os empréstimos que contrai têm um único objetivo: pagar, tardia, mas sinceramente, o lobolo -o dote- à família de Hélia para assim legitimar a sua união.
Em jogo estão 3.500 meticais em dinheiro vivo, dos quais mil a título de agradecimento, além de muita roupa, louça, cerveja, vinho e refrigerantes, em um total de US$ 500 [cerca de R$ 975].
O irmão mais velho de Hélia, sucessor do pai morto, receberá um terno completo e um par de sapatos. À sogra caberá bengala, sapatos, três capulanas, um terninho completo e o mucume -uma espécie de xale. As despesas com a boda correrão também por conta de Jacinto.
A instituição do lobolo continua enraizada entre os pobres das cidades e igualmente nas aldeias, onde a parcela em dinheiro é substituída por gado bovino.
Em vastas camadas da classe média urbana e mesmo entre os ricos que não abrem mão do respeito alheio, a adesão ao lobolo é também grande. Ao lobolo e a outras tradições.
Não sem constrangimento, assisti a um lingüista moçambicano referir-se a sua terra natal nos seguintes termos: "Tudo aquilo é meu; aliás, eu sou o rei de lá".
A pinta de lorde inglês pouco viril e a economia verbal eram as únicas coisas a o apartarem de Chimiete Francisco Macia, o impagável régulo de Bilene [na costa de Moçambique], que, em agosto de 1965, anunciara: "Nas minhas terras o governo sou eu, e quem não cumprir minhas ordens e não pagar os impostos que eu estipular será por mim castigado e até morto, se necessário".
O delírio marxista da construção do "novo homem" levou a Frelimo [Frente de Libertação de Moçambique, movimento que assumiu o poder em 1962, quando o país se tornou independente] a marginalizar os potentados locais.
Um desastre anunciado.
Afinal, ainda quando despóticas, as autoridades tradicionais -"hosi", "mwene", "mambo" ou "ishe", dependendo da língua- encarnam os guias espirituais das comunidades, além de representarem o poder civil que ordena as relações entre as linhagens, aldeias e etnias.
Sem surpresa, os régulos logo se bandearam para a Renamo [Resistência Nacional Moçambicana]. Ao ajudarem a pôr termo ao domínio do partido único em 16 anos de guerra civil (1976-92), contribuíram enviesadamente para a chegada da modernidade.
Descendentes de escravos
A Frelimo rendeu-se à realidade e, em 2000, reconheceu a importância política e administrativa dos chefes locais, naturalmente visando cooptá-los. Mas essa história está longe do fim.
A tradição alinhava igualmente outras práticas pouco edificantes, mas nem por isso fora de lugar. Há no país entre 2 milhões e 3 milhões de descendentes de escravos, discretamente estigmatizados no dia-a-dia.
Segundo a tradição oral, na década de 1950 muitas mulheres eram capturadas ao regressarem do trabalho nos campos e nos rios. Pior: o cativeiro doméstico ainda hoje viceja.
Sem contar a miséria humana expressa por meio de milhares de meninas mutiladas pela excisão clitoriana.
Tudo isso convive muito bem com o capitalismo nascente, sugerindo serem as sociedades os suportes do mercado -e não o inverso.
Não procede, pois, a reiterativa redução da África a uma espécie de Titanic a quem a modernidade obriga a fazer água por todos os lados.
Como a Índia e China contemporâneas, também a África opera mediante uma imensa profundidade de campo histórico. O capitalismo moçambicano se reproduz por meio da tradição.
Embora a decadência impere, há também novidades na arquitetura. São inúmeras as mansões futuristas, sobretudo os atrozes monstros de aço e vidro que rasgam os céus e impõem uma modernidade caricatural à promiscuidade da paisagem urbana.
Mudanças assim resultam do espetacular crescimento econômico de Moçambique. Espera-se um incremento de 8% no PIB de 2007. Mas Nampula, a mais rica Província do país, cresceu 11% em doze meses.
Toda estatística é aqui precária, e mesmo a população é estimada -obviamente, apenas o número de votantes é mais bem conhecido.
De todo modo, inflação de 3% é coisa de Primeiro Mundo, garantindo certo desfrute generalizado do boom econômico.
Um poliglota típico
A recentíssima modernidade do país desvela-se caricatural quando nos engalfinhamos com a mais precária cobertura de internet da África.
Ou ao constatarmos a imensa dependência de Moçambique para com os recursos remetidos pelos migrantes que labutam nas minas sul-africanas, a fonte da Aids que assola a população adulta. Para não falar das doações estrangeiras, cujas entradas já não envergonham os cidadãos -simplesmente os viciaram.
Tradição destruída pelo capitalismo selvagem? Bobagem.
Jacinto Salvador Tovela, 38 anos, é um moçambicano típico. Emparedado entre a tradição e a modernidade latente, seu universo é multicultural como o da maioria dos africanos urbanos -nasceu em Maputo, sendo pois fluente em xangana, ronga e português; seu pai é de inhambane, o que o levou a falar chopo; arranha o zulu, pois freqüentemente viaja para a África do Sul.
Protestante, Jacinto lê e escreve, tendo abandonado o álcool em tenra idade. Rala 15 horas por dia como motorista da Universidade Eduardo Mondlane, está conectado à web e mora na cidade-dormitório de Matola, na verdade uma das maiores favelas do mundo.
O amor por Hélia, com quem vive desde 1998, deu-lhe dois filhos. Pela família, Jacinto se rende à tradição -ou melhor, encontra na tradição a mais completa tradução da sua identidade.
O trabalho e os empréstimos que contrai têm um único objetivo: pagar, tardia, mas sinceramente, o lobolo -o dote- à família de Hélia para assim legitimar a sua união.
Em jogo estão 3.500 meticais em dinheiro vivo, dos quais mil a título de agradecimento, além de muita roupa, louça, cerveja, vinho e refrigerantes, em um total de US$ 500 [cerca de R$ 975].
O irmão mais velho de Hélia, sucessor do pai morto, receberá um terno completo e um par de sapatos. À sogra caberá bengala, sapatos, três capulanas, um terninho completo e o mucume -uma espécie de xale. As despesas com a boda correrão também por conta de Jacinto.
A instituição do lobolo continua enraizada entre os pobres das cidades e igualmente nas aldeias, onde a parcela em dinheiro é substituída por gado bovino.
Em vastas camadas da classe média urbana e mesmo entre os ricos que não abrem mão do respeito alheio, a adesão ao lobolo é também grande. Ao lobolo e a outras tradições.
Não sem constrangimento, assisti a um lingüista moçambicano referir-se a sua terra natal nos seguintes termos: "Tudo aquilo é meu; aliás, eu sou o rei de lá".
A pinta de lorde inglês pouco viril e a economia verbal eram as únicas coisas a o apartarem de Chimiete Francisco Macia, o impagável régulo de Bilene [na costa de Moçambique], que, em agosto de 1965, anunciara: "Nas minhas terras o governo sou eu, e quem não cumprir minhas ordens e não pagar os impostos que eu estipular será por mim castigado e até morto, se necessário".
O delírio marxista da construção do "novo homem" levou a Frelimo [Frente de Libertação de Moçambique, movimento que assumiu o poder em 1962, quando o país se tornou independente] a marginalizar os potentados locais.
Um desastre anunciado.
Afinal, ainda quando despóticas, as autoridades tradicionais -"hosi", "mwene", "mambo" ou "ishe", dependendo da língua- encarnam os guias espirituais das comunidades, além de representarem o poder civil que ordena as relações entre as linhagens, aldeias e etnias.
Sem surpresa, os régulos logo se bandearam para a Renamo [Resistência Nacional Moçambicana]. Ao ajudarem a pôr termo ao domínio do partido único em 16 anos de guerra civil (1976-92), contribuíram enviesadamente para a chegada da modernidade.
Descendentes de escravos
A Frelimo rendeu-se à realidade e, em 2000, reconheceu a importância política e administrativa dos chefes locais, naturalmente visando cooptá-los. Mas essa história está longe do fim.
A tradição alinhava igualmente outras práticas pouco edificantes, mas nem por isso fora de lugar. Há no país entre 2 milhões e 3 milhões de descendentes de escravos, discretamente estigmatizados no dia-a-dia.
Segundo a tradição oral, na década de 1950 muitas mulheres eram capturadas ao regressarem do trabalho nos campos e nos rios. Pior: o cativeiro doméstico ainda hoje viceja.
Sem contar a miséria humana expressa por meio de milhares de meninas mutiladas pela excisão clitoriana.
Tudo isso convive muito bem com o capitalismo nascente, sugerindo serem as sociedades os suportes do mercado -e não o inverso.
Não procede, pois, a reiterativa redução da África a uma espécie de Titanic a quem a modernidade obriga a fazer água por todos os lados.
Como a Índia e China contemporâneas, também a África opera mediante uma imensa profundidade de campo histórico. O capitalismo moçambicano se reproduz por meio da tradição.
MANOLO FLORENTINO leciona história na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.
5 comments:
"Jacinto Salvador Tovela, 38 anos, é um moçambicano típico", porque se chama tovela? porque tem 38 anos? e o lobolo e para os pobres?
este texto arrepia. nunca vi uma preguica de pensar e investigar como esta. so isto interessa o brazil.
J.M
O pior é quando nós próprios nos ignoramos!
Patricio, estou simplesmente estarrecido com o texto... Matola virou favela...Emidio Gune
É realmente estarrece-dor!
Cuidado com o “ignorante motivado”!
Hiiii
vale mais o "ignorante motivado" que o "conhecedor desmotivado". Pelo menos vai estimula-lo (espero) a escrever um dos seus magnificos textos. aguardo impaciente sua critica.
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