Muito antes de o Padre Filipe Couto se tornar no mais recente reitor da Universidade Eduardo Mondlane (UEM) era uma figura que me despertava algum interesse. Nos meados da década de 90, no contexto da privatização do ensino superior no país, suas intervenções suscitavam em mim algum desconforto por razões de coerência lógica das suas ideias. No entanto sempre lhes reduzi a importância na altura dando benefício à dúvida Não queria fazer um juízo precipitado do conteúdo do dito pela forma do dito, isto é, o que é dito por como é dito. Quis o destino (não; o presidente da república) que o Professor Doutor Padre Filipe Couto (disseram-me que no seu primeiro despacho como reitor exigiu que seja tratado por Professor Doutor..., seja feita a sua vontade) passasse a ser o reitor da UEM. Eis uma boa oportunidade para nos próximos anos poder por a prova as minhas primeiras impressões substituindo-as por percepções mais estruturadas e estruturantes sobre o reitor. Afinal, quanto mais falamos e escrevemos mais nos expomos ao olhar critico dos outros. Nesse sentido é até boa a sua nomeação para reitor da UEM.
Tenho uma irmã, historiadora e geógrafa, que tem na pessoa do Professor Doutor Padre Couto um ídolo. Sempre que questionasse ou me interrogasse sobre o sentido e/ou significado de algo pronunciado pelo, outrora, Padre Filipe Couto ela (a minha irmã) saia incondicionalmente em sua ferrenha defesa. Por alguns momentos, intrigou-me o facto de na sua argumentação, a minha irmã, sempre recorrer a argumentos de autoridade para validar seja qual fosse a ideia sugerida pelo actual reitor da UEM. Os argumentos de autoridade partem do princípio de que alguém, pessoa ou instituição, tem conhecimento de causa sobre algo. A sua fórmula lógica pode ser representada da seguinte maneira: X (pessoa ou instituição tem obrigação de saber) diz Y. Logo, Y é verdade. Por exemplo: Alice Mabota, presidente da Liga dos Direitos Humanos, diz que há tortura de prisioneiros nas cadeias em Moçambique (vide relatório dos direitos humanos da LDH, 2005). Logo, prisioneiros são torturados em Moçambique. Este tipo de argumentação com esta forma é baseia-se na autoridade reconhecida, portanto, legitima de quem diz algo.
Como raciocinou a minha irmã sempre que me interpelou em defesa dos pronunciamentos do reitor? Vejamos o tipo de expressões que usava na sua locução comigo: - quem és tu para questionar um dos primeiros Moçambicanos doutorado? Sabias que já na década 60, Couto, era académico? Estas a falar de um doutorado na Alemanha, mais ou menos do calibre de Eduardo Mondlane? A minha irmã tinha toda a razão. Existe todo um capital cultural acumulado (qualificações académicas) que justificam que depositasse toda a confiança no que fosse dito pelo actual reitor.
Ao contrário não reconhecia em mim autoridade e legitimidade alguma para pôr em causa a autoridade do Padre. Uma pessoa doutorada há vários anos não podia cometer o tipo de gralhas que eu achava identificar nos seus pronunciamentos. Essa atitude da minha irmã incomodava-me, mas sempre a relevei, afinal não passavam, as nossas, de conversas banais mesmo quando o assunto não o fosse. O problema é que por vezes esse tipo de argumentação que se apoia na crença em outrem pode ser arriscado. Nem todas as prisões em Moçambique torturam os presos, e as vezes as fontes que usamos para obter informação são tendenciosas, tal como podia ser com a LDH cuja metodologia usada no estudo que determinou a existência de tortura é bastante questionável. O mesmo se pode dizer em relação a ideia de que por se ter credenciais académicas é se dono da verdade. Devíamos ser mais precavidos e cautelosos em relação ao objecto sobre o qual a autoridade em que nos apoiamos emite algum pronunciamento. Para o meu desagrado, a minha irmã multiplicou-se nas pessoas que enveredam pela sua atitude de sucumbir a autoridade idolatrada do reitor.
Por exemplo, um articulista do Jormal Meianoite, por quem nutro maior estima e consideração, tal como acontece para com a minha irmã, na edição de 27 de Março de 2007, reflecte sobre o que considera ser uma universidade relevante. Apresenta, no meu entender, uma visão que glorifica uma razão instrumental (voltarei à este conceito mais adiante) para a universidade. Mas não é para reflectir sobre esse artigo que escrevo. No entanto interessou-me uma frase que é sintomática na maneira como se tem apresentado o novo reitor da UEM.- “Quem conhece, minimamente, o Padre Couto sabe que ele é dos intelectuais mais finos deste país”. Faria, para mim, um grande favor se me pudesse fazer conhecê-lo melhor e partilhar da mesma opinião. Não penas, minimamente, mas o melhor possível pois tratasse de quem está a dirigir os destinos da maior universidade pública do nosso país. Os mecanismos, político-burocratios, da sua nomeação não permitiram a gente como eu, fora dos círculos do reitor, conhecer as suas credencias para merecer ocupar aquele lugar. Tudo ficou ao critério do presidente da república, mesmo que este seja aquele que menos vai sentir os efeitos directos do exercício do novo reitor.
Sem precisar de entrar nas entrelinhas da distinção entre intelectual e académico fico com algumas reservas em relação a referida elegância intelectual. Acho que é momento de iniciarmos um exercício fundamental de critica da autoridade. Uma critica da autoridade não visa desqualificar a fonte ou autoridade. Uma critica da autoridade ajuda-nos simplesmente a devolver a humanidade e com tal a falibilidade para seja qual for a autoridade em quem – “cegamente” – acreditamos. É o que procurei fazer neste artigo. Longe de mim a intenção de desqualificar o reitor como tal, mas as suas ideias, principalmente, por serem públicas e de interesse público devem ser interpeladas e não idolatradas. E é isso que tento fazer.
Comecemos pelo seguinte exemplo:
O reitor da Universidade Eduardo Mondlane, quando questionado pela Jornalista, Olívia Massango, do Jornal O País, edição de 6 de Abril de 2007, sobre quais eram os grandes problemas das universidades do país e da UEM em particular, disse que: - “é um problema de compreender que a ciência e a pesquisa na universidade em Moçambique deve saber gerir estados de emergência; saber prevenir resolver problemas. Há pouco tempo a terra zangou-se connosco e tivemos um terramoto. A água zangou-se connosco e tivemos cheias. O vento zangou-se connosco e tivemos ciclone. O fogo zangou-se connosco e tivemos paiol(...)”.
Quanta adversidade da natureza – HUMANA! Como nós estamos apenas sujeitos as adversidades da natureza (nunca humana, pelo menos, na visão do reitor) a missão da universidade deve ser aplicada para o controle dessa adversidade. Fica patente porque para o novo reitor não precisamos mais de cientistas sociais neste país. Não precisamos de gente que não sabe fazer. Gente que não sabe dominar a natureza. Neste país não há praticas sociais que reproduzem desigualdades sociais. Neste país, não existe um sistema político problemático que não permite o pobre veicular seus interesses sem que o faça por via da caridade dos bem intencionados (como diria o sociólogo Elísio Macamo). Neste país o pouco que se produz (o produto social, para não dizer riqueza) não é hierarquicamente distribuído. Neste país a pobreza democraticamente distribuída. É por tudo isso e mais alguma coisa que se retira da agenda política qualquer adversidade humana e se naturaliza tudo mais alguma coisa. Só assim se percebe porque articular a função da universidade como sendo a do domínio da natureza, e não do entendimento humano. Esquecemo-nos que o elemento mais natural que ainda possa existir no nosso planeta foi há muito socializado! Não há mais calamidades naturais, desastres naturais. A intervenção humana atingiu a totalidade da natureza que só nos resta uma natureza social. O natural esta socializado. Voltemos ao nosso reitor.
O reitor prossegue na sua resposta a jornalista e diz:
“As universidades em geral têm que prever e saber gerir emergências. Saber lidar com os elementos das ciências naturais: água, terra, fogo e ar...”
Água, terra, fogo e ar! Porque é que estes objectos são, necessariamente, elementos das ciências naturais? Ocorreu-me, ao debruçar-me sobre estas ideias do reitor, algo que li no início da minha curta carreira académica. Trata-se de uma frase do espistemologo, Francês Gaston Bachelard, – a quem mais tarde farei apelo no sentido de contrapor outra incredulidade relacionada com a sugestão de que f’e é espistemlogia – segundo a qual: - o fogo não é um objecto científico. Bachelard num texto intitulado a Psicanálise do fogo, sugere que fogo não é um objecto científico. O fogo, advoga espistemologo, objecto imediato e evidente, objecto que se impõe numa selecção primária suplantando muitos outros fenómenos, não abre qualquer perspectiva a um estudo científico. Quando se pergunta às pessoas cultas ou mesmo a alguns sábios, como se faz muitas vezes: “Que é o fogo?”, obtemos respostas vagas ou tautológicas que repetem inconscientemente as teorias filosóficas mais antigas e mais quiméricas. Isto explica-se pelo facto de a questão ter sido posta numa zona objectiva impura, na qual se misturam as intuições pessoais e as experiências científicas. Ao ler as ideias do reitor sobre o que considera ser o objecto das ciências naturais fico na dúvida. Aquelas baseiam-se nas suas intuições pessoais ou na sua experiência científica? Se for na sua intuição pessoal, então, é problemático termos um reitor a expor suas intuições pessoais na esfera pública. Essas não nos dizem respeito, são de fórum pessoal. Se for na sua experiência cientifica também se coloca o problema de apresentar uma visão bastante reducionista e ortodoxa de ciência. O fogo pode ser construído como objecto científico tanto por um físico como por um antropólogo, por um químico como por um sociólogo. Tudo depende da imaginação, perspectiva e objectivo que informa a maneira como conceptualizamos esse fogo.
Não devia sequer comentar a ideia de que a ciência serve para prever e previr emergências! Conforme sugerido pelo reitor a universidade devia ser uma espécie de Instituto Nacional de Gestão de Calamidades (INGC). O reitor ofereceu-nos uma visão utilitarista e talvez aplicada da ciência que se devia produzir nas, nossas, universidades. As suas respostas pressupõe que a não produção dessa ciência aplicada constitui o maior problema das nossas universidades. A pergunta, cínica que colocaria perante esta definição de ciência e universidade é: Será essa a vocação duma universidade, hoje, em dia?
O reitor duma universidade, como a UEM, que engloba quase todas as áreas do saber não podia ter uma visão tão limitada de ciência para confiná-la a um instrumento de resolução de problemas (sociais), melhor, naturais. A razão da ciência, há muito, que deixou de ser meramente uma razão instrumental. Pergunte-se quanto custou aos teóricos da escola de Frankfurt para libertar a razão da sua instrumentalização. Razão instrumental é um termo, na sua acepção mais comum, proposto pela primeira vez por Max Horkheimer no contexto de sua teoria critica para designar o estado em que os processos racionais são plenamente operacionalizados. Por exemplo, a razão ocidental, caracterizada pela sua elaboração dos meios para obtenção dos fins, tal como encontramos na fórmula de Max Weber se hiperplasia em sua função de tratamentos dos meios, e não na reflexão objectiva dos fins.
Na óptica de Horkheimer a razão tendo cedido em sua autonomia, tornara-se um instrumento. No aspecto formalista da razão subjectiva, sublinhada pelo positivismo enfatiza-se a sua não-referência a um conteúdo objectivo; em seu aspecto instrumental, sublinhado pelo pragmatismo, enfatiza-se a sua submissão a conteúdos heterónimos. A razão tornou-se algo inteiramente aproveitado no processo social. Seu valor operacional, seu papel de domínio dos homens e da natureza tornou-se o único critério para avaliá-la. É por essa razão que autores como Habermas, um outro teórico da escola de Frankfurt, na sua fase tardia, propôs uma razão comunicativa, onde o papel da universidade, da ciência e da razão é contribuir para o desenvolvimento duma cultura de entendimento, de um agir comunicacional.
Habermas desenvolve na teoria da acção comunicativa uma análise teórica e epistémica da racionalidade como sistema operante da sociedade, nesse sentido, deve-se analisar sua tese como contraposição da razão instrumental. Na ideia de mundo da vida, Habermas mostra a racionalidade dos indivíduos mediada pela linguagem e comunicatividade. Esses elementos se constituem em instrumentos de construção racional dos sujeitos subjacente e calcado na estruturação de três universos: o objectivo, subjectivo e social.
Um reitor para ser reitor deveria, em minha opinião, ter uma visão mais ampla e menos reducionista, utilitarista e instrumental da razão, de ciência e do uso social da universidade.
O reitor é um cientista natural, matemático, (aplicada?), logo, a ciência natural tem de ser o melhor para a universidade? O génio do reitor como cientista natural (matemático) não o estabelece como o génio na definição da função e do uso social do conhecimento produzido na universidade. Ademais, só uma ciência estagnada no positivismo ortodoxo, com deficit epistemológico, continua a acreditar que a função social da universidade é produzir previsibilidade dos fenómenos (naturais) para controlá-los e dominá-los. Para não falar do combate a pobreza absoluta.
Fé é epistemologia?
É por isso que é importante ter-se uma visão ou um conceito claro de epistemologia. Com a visão de epistemologia como fé, tenho fé que reside aí o reducionismo utilitarista que se atribui a ciência e a universidade. Tenho para mim que devia alargar a fonte de epistemologos, para além do ex-reitor da UP. A minha irmã foi aluna de Carlos Machili aquém também idolatriza. Carlos Machili é citado pelo Padre Couto como tendo dito algures que: Fé é epistemologia! Ainda estou perplexo com este enunciado que continuo sem perceber o que é que ele queria dizer com isso.
No sentido atribuído pela ciência crítica das ciências, repito isto, ciência cuja vocação é fazer critica das ciências, a epistemologia ocupa-se e preocupa-se com os princípios fundamentais das ciências, com os critérios de verificação e validade, alem dos sistemas científicos. Em outras palavras, a epistemologia é uma espécie de ciência da ciência que actua como uma garantia e um controlo do conhecimento, prevenindo obstáculos à produção científica.
O reitor diz e passo a citar:
- Epistemologia são as convicções profundas dos indivíduos e condições profundas dos povos. E exemplifica dizendo: - há povos que acreditam numa coisa. Aquilo não é fé é uma epistemologia. Por exemplo, acreditamos que somos uma nação do Rovuma ao Maputo. Pode haver gente que critica isto, mas eu preciso desta fé, desta epistemologia para ter uma constituição da minha nação (...).
Por mais que me esforce não consigo perceber concepção de epistemologia. Pelo menos, não no âmbito daquilo que se considera ser uma teoria de conhecimento ou filosofia da ciência que, em outras palavras, se designa epistemologia. Dizia que não consigo perceber que relação pode existir entre a preocupação com as condições teóricas e sociais de produção de conhecimento científico com a explicação de epistemologia dada pelo reitor, muito menos a citação do ex-reitor da universidade pedagógica segundo a qual f’é é epistemologia. Quem me pode ajudar a perceber? É mesmo dúvida que tenho!
É sobre este tipo de enunciados, intrigantes, que devemos ter alguma incredulidade. Estou há algum tempo esforçando-me em perceber a ideia (concepção) de ciência e até de religião defendida pelo novo reitor da UEM. Tenho para mim, e por isso defendido, que acima de tudo a universidade é uma espaço social, eminentemente, de produção cultural de conhecimento científico. Atribuam-se-lhe outros usos sociais, nada porém justificaria a subalternização da lógica produção cultural de conhecimento por qualquer outra que seja. Fazer isso significaria, suponho, ter uma visão limitada de ciência.