Wednesday, May 16, 2007

Música Moçambicana

Timóteo Bila é estudante do terceiro ano de Ciências Sociais na Faculdade de Letras e Ciências Sociais da Universidade Eduardo Mondlane.

Espelho de Revolução Sexual e de Discurso sexista
Por Timóteo Bila

É este ofício consolador da música: Ela se expande como a luz, circula como ar, suaviza as agonias, e o seu eco perdura por todos os lugares onde passa. Um canto de dor, uma lírica de paixão torna as paixões de amor belas; enobrece-as e justifica-lhes os excessos.”
Ettore Moschino (Escritor e Jornalista italiano)

Por uma simples comoção apaixonada, assuntos relativos a relações sociais, a género, a simbolismo social das relações de poder, me atraem a contemplá-los. Não a explicá-los cientificamente dado à minha pequenez intelectual dentro da bendita industria da razão técnica. Por isso, o que se segue é destituído de toda a frigidez conceptual científica. Trata-se de uma simples “tagarelice” que se quer uma reflexão sobre a nossa música como um espelho dum fenómeno inimaginável em décadas passadas – a revolução sexual, e de um conformismo alegre ao domínio do ego masculino nas relações do género.

Em A Política, Aristóteles, em capítulos cujo conteúdo é a importância de educação musical aos cidadãos (livres), considera a música um jogo, um passatempo, para além de ser uma ciência. Ao cidadão não se pode privar um mínimo de conhecimento do valor pragmático da música. Dormindo à sombra de Aristóteles, sonho a dizer: O espirito (o exercício da razão, trabalho racional), para ser mais frutífero, precisa do afago galante dos sentimentos da alma. A musica é, então, essa droga adocicante da alma e, consequentemente esse descansadouro do espirito. Pois “o trabalho produz sempre a fadiga e uma forte tensão das nossas faculdades, e é preciso, por isso mesmo, saber empregar oportunamente o jogo como um remédio saudável. O movimento que o jogo proporciona acalma o espírito e proporciona-lhe descanso mediante o prazer que causa”.(1)

Mas a música não é apenas o remédio de fadigas, é também uma expressão cultural, um reflexo de valores morais ou culturais de uma sociedade concreta. Com efeito, as narinas das nossas almas inalam em todo o lado a fragrância musical de "maboazuda, magostosa", de "Terezinha você, ni taku xavela mimovha (comprar-te-ei carros...) ...negra, mulata...apanha", de "ni taya casa 2 (gozarei na casa 2)", e etc – perdoem-me a tradução. Daqui, podemos perceber duas realidades:

1) a expressão duma geração sem tabus, sem sexualidade reprimida, sem domínio da Dona Ignorância em matéria do sexo como um jogo e prazer;
2) a imagem da mulher como objecto do sexo, uma boneca viva cuja raizon d'trê é a satisfação do ego masculino. É o homem quem compra bens materiais (celulares, carros, etc.) a enfeitiçar a "elegância feminina", seja ela mulata, negra, albina...Por um lado, temos a revolução sexual, por outro o discurso sexista.
Revolução sexual
Vale assinalar que não brotei do húmus de Pitágoras para discutir a origem das coisas, neste caso, origem de tal revolução sexual. A intenção é referir-me à música como reflexo de “novos” valores e novas regras de jogo sexual da nossa sociedade actual. Não obstante, suspeito que com o serpentear todo-poderoso dos cartazes, palestras, propagandas do sexo seguro, movido pelo terror de HIV/SIDA, inauguramos uma época de mudanças sérias em todo o tecido relações sexuais. Esses mecanismos para Prevenção de HIV/SIDA sabem, aparentemente, convencer a "comer banana com casca" - desmitologizando a santidade de "comer banana sem casca" apregoada na sociedade "tradicional".
Elísio Macamo, em O Abecedário da nossa Dependência, numa breve mas profunda reflexão sobre o “jeito” (preservativo) escreve que “as canções, os dísticos e cartazes, a publicidade na rádio e televisão encarregaram-se de precipitar a sociedade para novas formas de comportamento, novos tipos de relação entre pais e filhos, adultos e crianças, em suma o “Jeito” está a ser mais do que um instrumento de prevenção. É um agente infiltrado que está a organizar uma revolução sexual e de valores na nossa sociedade”.(2) Ergue-se uma sociedade sem tabus, sociedade onde a permissividade, por preguiça de dizer liberdade, é condição sine qua non para felicidade da nova juventude, qual se assemelha, de alguma forma, à juventude da histórica revolução sexual dos anos 50/60 nos Estados Unidos, na Europa e na América Latina, com os movimentos beats e hippies a contestar o modelo moral cristão ocidental.
Eis o que se firmou: é proibido proibir. Uma advertência que flutua no âmago da cultura pós-moderna. A (auto)realização não resulta necessariamente do progresso pela razão ocidental. A ocorrência das duas Guerras Mundiais traiu a fé optimista daquela juventude no progressismo iluminista. É preciso apreciar o êxtase, o sensual, as aventuras da alma (a aprender de outras culturas, principalmente orientais), e aí encontrar prazer, a felicidade aqui e agora. Navegando no jazz, rock n’roll, no sexo livre, nas drogas alucinógenas, os jovens dos anos 50/60 teceram uma outra cultura, não uma subcultura, mas uma contracultura. Libertaram-se da educação sexual opressora. Nós também o fizemos, mas não no mesmo contexto daqueles... Falta-nos a percepção dos efeitos negativos de libertação sexual e o esforço de minimizá-los antes de mergulharmos num estado de paranóia social.
Discurso sexista
Com a libertação sexual, reorganizam-se as relações de género. As mulheres despertam do silêncio e se expressam sexualmente, sem que isso constitua falta de pudor. Todavia, na música moçambicana contemporânea, mesmo com o contentamento com o sexo livre e cru, não se deixa de reafirmar os tradicionais papéis das mulheres como dependentes e secundárias. Na música – em exemplos acima mencionados - não se reflecte as diversas facetas da vida das mulheres ou as suas contribuições na condução dos destinos da sociedade. “Caracterizadas como essencialmente dependentes e românticas, as mulheres são raramente retratadas como racionais, activas ou decisivas”.(3)
É aqui onde encontra uma dura objecção o feminismo na sua luta ao derrube da sociedade patriarcal. Se “a revolução sexual marchou sub a bandeira da liberdade; o feminismo sub a da igualdade”, (4) pergunto eu: como ver a igualdade onde é o homem quem se despede da esposa rumo à casa 2?; como ver a igualdade onde é o homem quem tem o poder de compra, adquirindo bens materiais a encantar a mulher ao cativeiro dos seus apetites “animalescos”?
Assim, expressando o descontentamento do feminismo, ressalta Allan Bloom: “A paixão sexual masculina tornou-se de novo pecaminosa porque culmina no sexismo. As mulheres tornaram-se objectos, são violadas pelos maridos como por estranhos, são sexualmente perseguidas por professores nas escolas e por patrões no trabalho...” (5) Sim, neste processo de libertação sexual, confundindo-se nudez com pornografia, a mulher é ai vítima de “objectificação” quando lhe é explorada a sua sexualidade e aparência física.

Conclusão
A música moçambicana contemporânea não só reflecte a revolução sexual, mas também a encoraja a um passo mais veloz que a disseminação dos conhecimentos básicos que nossas crianças, adolescentes, jovens (e até adultos!) devem possuir sobre a sexualidade humana. Se é bem vinda a revolução sexual, urge purificar o seu conteúdo e nos precaver de que ela não venha a criar uma religião do sexo cru formando possessos sexuais, a ponto de se extinguir a consciência sobre os efeitos perigosos do instinto sexual. Através da nossa música percebe-se que já deixamos o slogan antigo - “cuidado com sexo” para o pós-moderno - “Ui! Quero sexo”. Mas, os conhecimentos básicos sobre Saúde Sexual Reprodutiva ou Vida Sexual Responsável são pouco partilhados, mesmo quando nossas cabeças deparam-se com números elevados de gravidez precoce/ indesejada, abortos clandestinos, casamentos forçados, e ITS/ HIV/SIDA.

Para já, é imperioso, se quisermos afirmar a igualdade do género, vigiar nossas expressões, nossos gestos que colocam a mulher numa posição de inferioridade ou de dependência em relação ao homem. Um projecto para o equilíbrio do género em nossa sociedade não deve cingir-se apenas em contar ou fazer subir os números do acesso e de frequência da rapariga na educação, ou de conceder crédito às “mamanas” vendedoras mas também em desconstruir o discurso sexista ainda bem cristalizado no imaginário sexual da nossa sociedade. Se a música recria o discurso sexista (que não só dicotomiza mas também hierarquiza os papéis sociais, colocando a mulher num plano inferior), ela requer uma intervenção social e político-educacional, no âmbito da construção de uma cultura de equidade de género.
Notas Bibliográficas

(1) Aristóteles. A Política. Portugal: Circulo de Leitores, 1975, p. 226.

(2) Macamo, Elísio. O Abecedário da nossa Dependência. 2ª edição. Maputo: ndjira, 2005, p. 48.

(3) Gellgher, M., Unequal opportunities: The case of woman and the Media, Unesco, Paris , 1981. Citado in SARDEC – WIDSAA, Para além das Desigualdades: A Mulher na África Austral, SARDEC, Harare, 2001, 270.

(4) Bloom, Allan. A cultura inculta: Ensaio sobre o declínio da Cultura Geral. 3ª edição. Portugal: Publicações Europa-América,1987, p. 96

(5) Idem, p. 99.

3 comments:

Anonymous said...

Minhas saudações pelo artigo interessante, apesar de tentares minimizá-lo. De tão interessante não resisti a um exercício de ‘pareceologia’ sobre os pontos que apresenta. Sobre o ‘mito’ da igualdade, parece-me que nem connosco mesmo somos iguais, quanto mais na relação com os outros, aqui eu olharia mais essas relações de poder a partir de Foucault e menos de Weber. Adicionalmente parece-me que para além do ‘…homem quem se despede da esposa rumo a casa 2’ tem a esposa que à semelhança do homem declara ter ‘… timbuya tamina (dela)…’. Parece-me ainda que ‘Cuidado com sexo’ e ‘Ui, quero sexo’ sempre foram e continuam sendo lados da mesma moeda. Por fim parece-me que para além do ‘… homem quem tem o poder de compra, adquirindo bens materiais a encantar a mulher ao cativeiro dos seus apetites “animalescos” tem a peça de um grupo teatral onde passava ‘Tomás, anda lá me fazer aí…!’. Pronto foi apenas ‘pareceologia’ e parecer não é ser. Mais uma vez aceite os meus parabéns, apesar de não credenciado para o efeito. Emidio Gune

Patricio Langa said...

Gune!
Não foi minha intenção minimizar o valor do artigo ao fazer o comentário prévio. Mas para evitar esse tipo de interpretações retirei o comentário. Se fosse minúsculo não o publicaria, não achas?.

Bayano Valy said...

Acho esta postagem interessante porque focou alguns aspectos que me parece devem ser introduzidos no debate sobre a nossa musica. A ligacao que faz sobre os conteudos musicais, o hiv e sida, as relacoes do genero e muito importante. Estou a escrever um artigo que publicarei num dos jornais da praca sobre o assunto, onde olho nao so para as musicas, mas tambem para o efeito da publicidade e a definicao de emergencia nacional (o hiv e sida e uma emergencia nacional).