Monday, March 5, 2007

Universidade para burocratas, não para cientistas!


Sendo certo que se reconhece na universidade uma instituição de ensino superior cuja vocação fundamental é produzir ciência, é legítimo nos questionarmos sobre as condições sociais em que tal produção ocorre, assim como os usos sociais a que esse produto é destinado. É igualmente certo que as funções das instituições de ensino superior se diversificaram reflectindo as mudanças sociais e de expectativas da sociedade ao longo do tempo. As universidades tornaram-se, então, em sistemas dinâmicos, algumas vezes de funções contraditórias.

As universidades Moçambicanas em particular, e por hipótese, tornaram-se instituições vocacionadas para a formação de buro-cratas e não de – homo-academicus – cientistas que se vão dedicar a investigação e criação de conhecimento novo (inovação). Não admira, portanto, que a nomeação dos seus gestores e administradores seja um mero acto político (no sentido temporal do termo). Neste artigo vou apresentar aquelas que foram historicamente se constituído em funções das universidades. O sociólogo Manuel Castells vai ajudar-me nessa empreitada, pois identificou alguma das funções que passo a apresentar sucintamente.

As universidades, segundo Castells, historicamente jogaram um papel fundamental de aparatos ideológico. Essa característica está enraizada na tradição europeia de universidade baseada na Igreja e fortemente ligada a ordem religiosa católica romana. Encontra-se também em tradições teológicas mais liberais de variedade anglo-saxónica. A formação e difusão de ideologia foram, e continua a ser, o papel fundamental das universidades, não obstante a ideologia apregoada de que são livres de ideologias. Contudo, este papel deve ser considerado na sua pluralidade de manifestações. Aparato ideológico não é pura e simplesmente máquina reprodutora, por exemplo do sistema político vigente, como seria visto pela teoria funcionalista. As diferenças, as contradições e conflitos da sociedade também podem nela se manifestar. Ser um aparato ideológico é então a primeira função da universidade.

A segunda função das universidades é de terem sido sempre mecanismos de selecção de elites dominantes. Nesse mecanismo está incluído, além da selecção no seu sentido estrito, o processo de socialização dessas elites e a formação de redes de coesão social. Estabelecem-se igualmente códigos de distinção entre essas elites e o resto da sociedade. A elite governante do nosso país, a título de exemplo, sai quase toda da Universidade Eduardo Mondlane, quando não considerados os casos em que se formaram em universidades fora do país. A selecção de elites não é uma prerrogativa ou apanágio das universidades privadas, como se tende pensar hoje. Talvez por ser ainda recente o nosso sistema de ensino superior ainda não distingue, claramente, as universidades em função do seu prestígio sejam elas públicas ou privadas. Mas isso é apenas uma questão de tempo.

A terceira função da universidade é aquela que já havia enunciado logo no início
deste texto, nomeadamente a geração de conhecimento cientifico novo. E aqui aproveito enfatizar a ideia de que as nossas universidades ainda estão longe de ter esta como sua função primordial. É que em muitos países, e o nosso em particular, esta função ainda não é reconhecida como fundamental tarefa pelas instituições políticas e privadas. No nosso caso, nem a revolução tecnológica que noutros contextos, por exemplo nos Estados Unidos da América, influenciou decisivamente a orientação das universidades para a geração de conhecimento científico se faz sentir significativamente. Uma nota prévia deve ser feita aqui. No caso europeu a aposta na produção de conhecimento científico foi delegado aos institutos de pesquisa e menos as universidades talvez pelos receios da sua vulnerabilidade às pressões dos estudantes e no nosso caso da massificação do acesso. Existem outros casos, como o Japonês, em que a função de investigação atribuída a instituições especializadas e não necessariamente ligadas ao ensino. A popularidade de universidades ligadas a investigação (research-oriented) está muito ligada ao sucesso da experiência do modelo norte-americano.

A quarta e última função que pretendo apresentar aqui, é a função da universidade de formar profissionais para a burocracia. É talvez a função que mais espelha o tipo de universidade que temos em Moçambique. Esta foi sempre a função básica da universidade, desde os seus dias como escola da igreja quando era especializada na formação dos burocratas da igreja. E foi esse tipo de universidade Napoleónica que inspirou muitas das universidades europeias. Outro exemplo é o da universidade chinesa que tem o mesmo legado, estruturada em torno da preparação do sistema imperial de exames de admissão como forma de acesso à burocracia do estado. O treino da burocracia tornou-se assim uma das principais funções da universidade em muitos outros cantos do mundo.

No nosso caso, a universidade está passar por um período de mudanças profundas, mas também encera algumas das principais crises ligadas a cada uma das funções que previamente apresentei. Estas crises da universidade foram sintetizadas da seguinte maneira, por um outro sociólogo, desta vez um Português, Boaventura de Sousa Santos.

Primeiro, uma crise de hegemonia resultante das contradições entre as funções tradicionais da universidade, portanto produção da alta cultura - o que Castells chamou de elites - pensamento crítico e conhecimentos exemplares humanísticos. A incapacidade da universidade para desempenhar funções contraditórias – formar elites pensantes e simultaneamente técnicos qualificados – levara as empresas capitalistas sedentas de mão-de-obra especializada a procurar fora da universidade meios alternativos de atingir esses objectivos. A perda do monopólio da produção de pesquisas vai mergulhar a universidade numa crise de hegemonia. Em Moçambique, penso, que a maior concorrente neste sentido são as ONG’s e as empresas de consultoria. A consultoria tornou-se na nova agência de produção de conhecimento no nosso país. Os consultores, mais internacionais que nacionais, produzem e detêm um acervo de informações e conhecimentos sobre nós que nenhuma universidade lhes faz concorrência, hoje. Estou neste momento a fazer uma pesquisa bibliográfica sobre o ensino superior, tecnologias de informação e comunicação em Moçambique e mais de 90% da informação não é produzida por nenhuma das nossas universidades ou instituições de investigação.

A segunda crise identificada por Santos é a de legitimidade, provocada pelo facto da universidade ter deixado de ser uma instituição consensual em face da contradição entre a hierarquização dos saberes especializados através da restrição do acesso e da credenciação de competências, por um lado, – aquilo que Castells designou de mecanismo de selecção e socialização – e as exigências, eu diria, das políticas de massificação. Ainda estão para ser feitos estudos sobre as implicações do actual modelo de massificação, através do alargamento do acesso a “classes” – diria campesinas ou rurais no nosso país. Uma das consequências sociológicas prováveis é a desvalorização das credenciais. Num contexto, como o nosso, em que estas ainda são vistas como o principal mecanismo de mobilidade social ascendente o nível de frustração dos graduados é, provavelmente, muito alto.


Finalmente, a crise institucional resulta da contradição entre a reivindicação da autonomia na definição dos valores e objectivos da universidade e a pressão crescente para submeter esta última a critérios de eficácia e produtividade de natureza empresarial ou responsabilidade social. Suponho que no nosso pais esta função esteja a ser cumprida mais pelas agências internacionais doadoras do que pelo próprio estado que também, de uma maneira geral, deve prestar-lhes contas, mais do que ao seu próprio povo. No meu entender a crise institucional na nossa universidade resulta mais da ténue definição da autonomia relativa desta em relação aos poderes políticos instituídos.

O exemplo mais fresco da ingerência da política (temporal) na política académica é o caso da nomeação de reitores. Este assunto já suscitou algum debate na nossa esfera pública. Aqui limitar-me-ei a colocar a minha visão, normativa, sobre o tipo de universidade que desejaria ver implantada no país ou melhor que não desejaria. Em texto mais elaborado irei tentar fornecer mais subsídios a esta reflexão com reecuso ao sociologo Francês Pierre Bourdieu de quem deixo alguns pensamentos.

Tudo seria bem no melhor dos mundos científicos possíveis se a lógica da concorrência “puramente” cientifica fundada apenas sobre a força das razões e de argumentos não fosse contrariada e até mesmo, em certos casos, anulada por forças e pressões externas – como se vê no caso da nomeação pelo presidente da república de reitores para as universidades publicas que ainda estão a meio caminho no processo de autonomização, e onde se podem disfarçar as censuras sociais (políticas) em censuras científicas e vestir de razões cientificas os abusos do poder social especifico, como a autoridade ou o poder de nomear mediante critérios desconhecidos pelos principais actores/ agentes de produção cientifica.
PS: Oi Gabriel Muthisse!
Respondo-te assim sobre as minhas reticências em relação a nomeação dos reitores pelo P.R.

2 comments:

Egidio Vaz said...

Muito obrigado PL pelo esforço em nos fazer compreender "coisas".
Aproveito o ensejo para, à sua laia, responder ao Gabriel Muthisse. Oportunamente e no meu espaço.

Patricio Langa said...

Caro Egídio.
Eu é que te agradeço pela atenção.
Claro, disponha do texto. Este espaço é, afinal, nosso.
Ainda te procuro, em momento oportuno, para mais lições sobre o uso das ferramentas do blog. Estou acompanhar a sua reflexão sobre a ‘zanga’ do Zambeze! Força.
Aquele abraço