Hoje é dia internacional da mulher, chovem mensagens enaltecendo as qualidades e os feitos históricos desta. Nos jornais de, hoje, Oito de Março, esta efeméride é comentada por diferentes personalidades. O Dia Internacional da Mulher é celebrado a
8 de Março de todos os anos. É um dia comemorativo para a celebração dos feitos económicos,
políticos e
sociais alcançados pela
mulher.
A ideia da existência de um dia internacional da mulher foi inicialmente proposta na virada do
século XX, durante o rápido processo de
industrialização e expansão económico que levou aos protestos sobre as condições de trabalho. As mulheres empregadas em fábricas de
vestuário e
indústria têxtil foram protagonistas de um desses protestos em
8 de Março de
1857 em
Nova Iorque, em que protestavam sobre as más condições de trabalho e reduzidos salários. As protestantes foram trancadas no interior da fábrica pelos patrões e pela polícia. Estes mesmos atearam fogo no prédio. 129 trabalhadoras morreram carbonizadas (vide: wikipédia).
Recebi, esta manhã, uma cópia do Jornal Meianoite com uma entrevista interessante dada pela Jurista da Liga dos Direitos Humanos de Moçambique, Augusta Eduardo. Interessante por que revela a complexidade que é abordar a “questão do género”, nomeadamente a luta pela igualdade de direito entre homens e mulheres, dadas as múltiplas dimensões (histórica, psicológica, sociológica in/consciente etc) que aquela encera. Mesmo pessoas instruídas, activistas, feministas, pro-feministas vezes sem conta vêem-se enredadas pelo habitus inculcado, sedimentado e naturalizado e a reproduzir (inconscientemente) as estruturas da famigerada dominação masculina.
Algumas passagens do comentário da Jurista com o título “ O esclarecimento que falta” ilustram essa observação.
Naturalismo e biologismo do comportamento
“... O termo igualdade de direito ainda não está bem explicado para a maioria das mulheres moçambicanas... este termo em nenhuma vez veio romper as leis da natureza que colocam o homem na condição de ser a cabeça da família independentemente da sua condição financeira”.
Se entendo o argumento da jurista está sugerir que a igualdade de direito não significa mudar as leis da natureza. Portanto, para a jurista é das leis da natureza o homem ser a cabeça da família. Noto nesta interpretação a presença de um naturalismo e algum biologismo. Primeiro, a jurista admite que há comportamentos sociais naturais (faz sentido?).
Usa, por exemplo, o lugar que a cabeça (cérebro, comanda das operações) ocupa no corpo humano como analogia da posição do homem na estrutura, de poder, familiar. A família uma instituição social é aqui remetida para o mundo do natural biológico. A família é um corpo, um corpo tem cabeça e a cabeça é o onde se aloja o cérebro que por seu detêm todo o sistema nervoso que comanda todas as acções do corpo.
Existe ainda outra passagem da intervenção da jurista que ilustra ainda melhor este argumento:
“ ...Este insuficiente esclarecimento... cria inclusive alguns desentendimentos nos lares principalmente quando a mulher tenta usurpar o lugar do homem colocando-se no comando da família”.“ O homem o é pela natureza e nunca a mulher vai retirar este lugar, é uma dádiva natural. O que nós as mulheres queremos é ser respeitadas, ter as mesmas oportunidades que os homens têm e não sermos subjugadas pelo facto se sermos mulheres”.
Parece-me que a Jurista lida com dois sentidos da noção de direito, incompatíveis (?). Por lado, admite que por direito natural o homem assuma a função social de (papel de liderança) “cabeça da família”, mas por outro não admite que este direito lhe confira maiores direitos sociais e oportunidades. Por outras palavras, os homens que mandem, porque essa é a sua condição natural de chefes de família, mas que não as maltratem e tenhamos mesmas oportunidades!
Ora o que a jurista não percebeu ainda é que são justamente essas instituições sociais, que ela as toma como naturais (família, e eu acrescento, igreja, escola, estado) que contribuem eficientemente para a reprodução da estrutura de oportunidades tanto na esfera privada (família) como na pública (estado). A exclusão da mulher desta ou daquela profissão, carreira leva em consideração as predisposições hierarquizas (naturalizadas) que elas favorecem e que contribuem para sua própria exclusão dos lugares que elas são sistematicamente excluídas.
Como notara Bourdieu, no seu livro intitulado a dominação masculina, um livrinho que todos deviam ter na sua cabeceira, essa dominação está de tal maneira ancorada em nosso inconsciente que não a percebemos mais, de tal maneira afinada com as nossas expectativas que dificilmente conseguimos repô-la em questão.
Medidas cosméticas "para o inglês ver"!
Muitas das medidas, cosméticas que se adoptam no âmbito do modista combate a descriminação e pela igualdade do género só acabem reproduzindo essas mesmas estruturas de dominação. Como a própria, jurista, nota no seu texto: “o nosso parlamento é dos que tem mais representação feminina a nível da região, mas que apenas meia dúzia delas é realmente activa e capaz de discutir com o seu género oposto de forma convincente”. Quer dizer, estão lá por resultado de políticas cosméticas só para o inglês ver. E ainda há quem surgiria, assim como um raio caído do céu azul, que se nomeasse uma mulher para o cargo de reitor. Pessoalmente, não vejo nada de errado na ideia de uma mulher se candidatar a ocupar tal posição. Podia até dar em uma boa reitora, quem sabe? Já tivemos, na UEM, uma vice-reitora que acho que se sai bem. Foi depois ministra do Ensino Superior Ciência e Tecnologia e também fez um trabalho notável.
No entanto, o meio pelo qual se quis propor a candidatura de uma mulher para a reitoria não me parecia justificar o fim, nomeadamente começar a eliminar essa estrutura de dominação masculina tão enraizada e visível na academia. Tenho dito, e insisto que nomear uma mulher por ser mulher é tão discriminatório quanto não nomeá-la pela mesma condição. Quem sabe? Talvez seja mesmo o desejo feminino da dominação masculina que ainda prevalece. E se assim for, haverá algo de errado? O quê?[fim].
Feliz dia internacional das Mulheres.
E já agora ofereço-lhes, a todas, e em especial a minha (minha? Que verbo possessivo) uma poema de um dos meus mais admirados poetas.
Palavras desnecessárias
Peoma para Mulher
Eu nunca me recordo de ti
eu nunca penso em ti
em nunca estou em ti
eu nunca sou ser-em-ti
Naturalmente que agora
me perguntarás a razão
de tão estranhos enunciados
tão feridores do comum senso
Mas tudo é simples
como simples
são as coisas naturais
Olha lá, por que razão haveria
de te recordar
de te pensar
de te estar
de me ser sendo-te
se em cada sulco de ti em mim
sempre me foste e te fui
como uma tatuagem binária dos deuses?
Por que razão haveria de dizer
o que sempre foi e será?
Por que razão haveria de usar palavras
quando sempre te fui no acto de me ser?
O que são palavras senão actos envergonhados
por terem de dizer o que não precisa ser dito?
O que são palavras senão empregados desastrados
que não sabem servir à mesa da realidade?
O que são palavras senão camisas desnecessárias
que querem vestir o que é nudez pura e evidente?
Por isso um dia te farei um poema como este
que despalavre as palavras no meu ser-te.
Poema, lindo, de Carlos Serra.
Fonte: http://lugardossonhos.blogspot.com/